sexta-feira, 12 de junho de 2009

TUDO QUE EXISTE MERECE PERECER

     Cá estamos nós há mais de sessenta anos de vigência (??????) da Declaração Universal de Direitos Humanos. Ao longo dessas seis décadas passamos pela iniqüidade de vinte e um longos anos de ditadura militar e de vinte e quatro igualmente longos anos de transição controlada. Nenhuma sociedade escapa incólume de um barulho destes. Houve aumento desenfreado dos meios de violência do Estado, que nunca abre mão de suas conquistas neste terreno: estão aí o pau-de-arara, os choques elétricos, os afogamentos, os desaparecimentos forçados, as execuções extra-legais como evidências empíricas – eles vieram para ficar. A tortura tornou-se a instituição central da ditadura militar e permanece como uma das instituições mais sólidas e mais longevas do país – junto com o latifúndio e a Igreja e a Rede Globo de Televisão.
        A cultura do terror, da impunidade, do sigilo, da destruição continuada do espaço público, da mentira organizada, da fabricação do esquecimento – levada às máximas conseqüências pela ditadura militar - prosperou e permanece arraigada no aparelho institucional, policial e repressivo. Junto com ela, também a cultura da criminalização do dissenso, da polêmica, da pobreza, dos movimentos sociais. Configura-se uma demofobia que atinge sobretudo os negros: está em vigor no Brasil - que, não por acaso, tem mais de trezentos e cinqüenta anos de escravidão no prontuário - uma política sistemática de extermínio da juventude negra.
        Assistimos, hoje, ao terrível espetáculo da reciclagem perversa da Doutrina de Segurança Nacional, arcabouço ideológico da ditadura militar, que forjou a figura do inimigo interno e da necessidade de sua eliminação. Se, naquela época, os inimigos internos eram todos e quaisquer opositores do regime – toda a sociedade era colocada sob suspeição - agora, os inimigos internos são nada menos que aqueles 2/3 da população que vivem no limiar da linha de miséria, os quais devem ser contidos, segregados, controlados e eliminados. São eles agora, de novo, os principais alvos da repressão policial, da violência institucional, da tortura, do extermínio. Este é o mal político – o mal absoluto , como ousou dizer Hannah Arendt -, que só se manifesta onde e quando existem condições políticas e espaço institucional adequado: tem sido prática disseminada e rotineira a ponto de se banalizar.
        A normalização defeituosa que aqui se instaurou com a Constituição de 1988, incorporou alegremente o estado de exceção permanente para as chamadas classes subalternas - as classes perigosas/torturáveis de sempre - que se traduz na generalização desta guerra contra os negros e os pobres e na política de encarceramento em massa. Tudo isto foi denunciado no Tribunal Popular: o Estado no banco dos réus (São Paulo, Faculdade de Direito da USP, 4 a 6/dezembro/2008). Este tribunal foi organizado por mais de setenta entidades – daqui de Minas participaram o IHG, as Brigadas Populares e a Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. O Estado brasileiro foi condenado como genocida e um dos campeoníssimos mundiais em graves violações dos direitos humanos: o pessimamente chamado Estado Democrático de Direito (?????????) tem matado e torturado mais que a ditadura militar, o que configura, segundo o filósofo Paulo Arantes a mais assustadora anomia que se possa imaginar. E o que é mais assustador: tem feito isto a céu aberto, não apenas nos porões do aparelho repressivo.
        Mais aterrador ainda é que esta reciclagem da D.S.N. foi globalizada, sobretudo a partir do 11 de setembro de 2001. Nos EUA, além da positivação da tortura, a 13 de novembro de 2001, foi promulgado ato (Military Order) que autoriza a detenção indefinida de não cidadãos suspeitos de terrorismo; e o chamado Ato Patriota, de 26 de outubro de 2001, criou a figura do detainee, aqueles estrangeiros (aliens) que são objeto de detenção indeterminada, fora de todo controle legal, jurídico ou de qualquer outra espécie. Tornam-se não-pessoas, supérfluos, descartáveis, desumanizados – literalmente inexistentes. Apesar de ter havido movimento no sentido de revogar estes dispositivos por parte do governo de Barak Obama, ainda não houve nada de concreto para reverter na prática esta situação.
        Estamos, portanto, vivendo uma situação-limite. Giorgio Agamben a define muito bem: o campo de concentração – onde tudo é possível para a realização do domínio total - tornou-se o paradigma biopolítico do Ocidente e não estamos falando apenas de Gaza e Guantânamo. Aqui estão as terríveis questões colocadas pelo jornalista uruguaio, Raúl Zibechia, a partir da premissa da existência de um obstáculo quase intransponível para qualquer possibilidade de retorno à política clássica:
“Mas Gaza não é certamente o único campo de concentração existente no mundo no sentido que lhe dá Agamben. A sua existência domina um modo de dominação que vai ganhando terreno em todo o mundo. Quantos locais existem em que é possível matar uma pessoa sem que isso constitua um homicídio? Na América Latina esta é uma situação cotidiana de boa parte dos povos originários e de milhões de habitantes das periferias pobres das grandes cidades. O que são as favelas brasileiras e os bairros de Port-aau-Prince senão enormes campos de concentração a céu aberto, onde o Estado ‘já não morre nem vive, simplesmente sobrevive’? Com a desculpa do narcotráfico e da delinqüência, milhares de latino-americanos pobres sã mortos todos os anos com impunidade total”.
        Esta situação contamina, assim, todo o planeta e encontra terreno fértil aqui no Brasil, que acolheu com tanta desenvoltura paradigmas como a tal tolerância zero, que tem a mesma matriz: aquela do permanente vigiar e punir, do império da lei e da ordem para consolidar e ampliar a hegemonia do neoliberalismo. Que nada mais é do que um programa definitivo para destruir as estruturas coletivas capazes de resistir à lógica do mercado puro (Bourdieu). Decretou-se o fim da sociedade. Ou, nas palavras de Ms. Thatcher: "Não existe esta coisa chamada sociedade. Existem homens e mulheres enquanto indivíduos e famílias".
        Está em curso um fenômeno absolutamente deletério apontado por James Petras no livro Combates e Utopias: uma busca desesperada, por parte dos movimentos de direitos humanos, de respeitabilidade e legitimidade que os faz adotar o discurso e as elaborações do inimigo como referência. O que acaba gerando confusão política e promiscuidade insuportáveis - na verdade é busca de respeitabilidade burguesa. É como se todo mundo estivesse do mesmo lado da barricada. O discurso passa a ser palatável: perde-se substância crítica para se conquistar espaço na mídia. O dissenso e o confronto são criminalizados, a radicalidade é isolada e desqualificada. Assim, não há como democratizar a democracia, como diz Boaventura de Souza Santos. É este um dos mais deletérios corolários do pensamento único – também primo-irmão da D.S.N. - arcabouço ideológico do neoliberalismo.
        É por estas e por outras que nunca é demais repetir que a luta pelos direitos humanos é, ontologicamente, contra-hegemônica. O Instituo Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania se apresenta como um espaço onde possamos refletir sobre esta realidade na perspectiva de transformá-la. O que equivale a fazer o exercício da política na perspectiva da construção de mecanismos de contrapoder, de contradiscurso e de contramemória e resgatar as energias utópicas sem as quais não há como interferir nos negócios do mundo. Trata-se de um coletivo em construção, absolutamente libertário, autônomo e independente, autogerido, auto-sustentável.
         Queremos abri-lo para todos que atuam do nosso lado da barricada e para todas as manifestações – políticas, artísticas, culturais – que apontem para o combate cerrado a este modelo de Estado forjado pela sacralização do mercado e da propriedade cuja verdadeira face é o totalitarismo, com diz Chico de Oliveira.
Para concluir, retomemos o título deste editorial à maneira gramsciana, ou seja, pessimistas na análise, otimistas na ação. Podemos lê-lo da seguinte forma: a dialética – para o bem ou para o mal - mais cedo ou mais tarde joga a nosso favor: onde há contradição, há espaço para briga. Continuidade e permanência, dois lados da mesma realidade – propriedade do tempo histórico. Ou como diria Brecht:
“Fôssemos infinitos, tudo mudaria.
Como somos finitos, muito permanece.”
Maio 2009
Instituo Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania