PROIBIÇÃO DO DISCURSO DE VERA PAIVA
NA SANÇÃO DA COMISSÃO DA VERDADE
Nós, do IHG, sabemos muito bem quem
construiu esta lambança toda, desde a concepção da Comissão da
Inverdade e da Injustiça espúria que foi sancionada na última 6a feira
(18/11/2011). Dilma Roussef se recusou terminantemente O TEMPO TODO a receber
os familiares de mortos e desaparecidos políticos e os movimentos de direitos
humanos para ouvi-los: nenhuma das nossas propostas foi contemplada.
Por outro lado, teve a
interlocução mais aberta e subserviente possível com os generais e fascistas de
plantao e acatou TODAS as suas sugestões. E, agora, impediu a nossa companheira
Vera Paiva - filha do desaparecido político Rubem Paiva - de se manifestar na
cerimônia de sanção para não constranger os militares (?????????????????????????).
Quanto a este incidente (?),
o menino de recado dos generais foi José Genoíno - que tem ampla folha de
serviços prestados às Forças Armadas -, mas a responsabilidade é da presidência
da república.
Fazemos nossas as palavras do
companheiro Pedro Pomar:
"Todos estamos de pleno acordo quanto ao triste papel desempenhado pelo
sr. Genoíno, o estafeta dos generais. Mas, que diabo, o sr. Genoíno não decide
coisa alguma! Ele é um mero assessor do ministro da Defesa.
A questão principal, para mim, não é a reiteração da patética trajetória de
vida deste cavalheiro. Isso já são favas contadas. A questão principal é: a
comandante-em-chefe das forças armadas, uma vez mais, deixou-se comandar por
aqueles que deveriam obedecer as ordens dela. Isso sim é grave, muito grave
para a democracia.
Genoíno foi o portador da
chantagem. A responsabilidade maior é de quem anuiu, de quem tem poder para
demitir ou mandar prender, mas consentiu em permitir essa nova himilhação da
sociedade civil brasileira pelos chefes fardados. Isto sim é de doer. Isto é
trágico."
A seguir, o IHG publica o discurso
não pronunciado da companheira Vera Paiva:
Sexta feira, 18 de novembro de 2011, 11:00, Palácio do Planalto, Brasília
Excelentíssima Sra. Presidenta
Dilma Roussef, querida ministra dos Direitos Humanos Maria do Rosário. Demais
ministros presentes. Senhores representantes do Congresso Nacional, das Forças
Armadas. Caríssimos ex-presos políticos e familiares de desaparecidos aqui
presentes, tanto tempo nessa luta.
Agradecemos a honra, meu filho
João Paiva Avelino e eu, filha e neto de Rubens Paiva, de estarmos aqui
presenciando esse momento histórico e, dentre as centenas de famílias de mortos
e desaparecidos, de milhares de adolescentes, mulheres e homens presos e
torturados durante o regime militar, o privilégio de poder falar.
Ao enfrentar a verdade sobre esse
período, ao impedir que violações contra os direitos humanos de qualquer espécie
permaneçam sob sigilo, estamos mais perto de enfrentar a herança que ainda
assombra a vida cotidiana dos brasileiros. Não falo apenas do cotidiano das famílias
marcadas pelo período de exceção. Incontáveis famílias ainda hoje, em 2011,
sofrem em todo o Brasil com prisões arbitrárias, sequestros, humilhação e
tortura. Sem advogado de defesa, sem fiança. Não é isto que está em todos os
jornais e na televisão quase todo dia, denunciando, por exemplo, como se
deturpa a retomada da cidadania nos morros do Rio de Janeiro? Inúmeros dados
indicam que, especialmente brasileiros mais pobres e mais pretos, ou
interpretados como homossexuais, ainda são cotidianamente agredidos sem defesa
nas ruas, ou são presos arbitrariamente, sem direito ao respeito, sem garantia de
seus direitos mais básicos à não discriminação e à integridade física e moral
que a Declaração de Direitos Humanos consagrou na ONU depois dos horrores do
nazismo, em 1948.
Isso tudo continua acontecendo, Exma.
Presidenta. Continua acontecendo pela ação de pessoas que desrespeitam sua
obrigação constitucional e perpetuam ações herdeiras do Estado de exceção que
vivemos de modo acirrado de 1964 a 1988.
O respeito aos direitos humanos, o
respeito democrático à diferença de opiniões, assim como a construção da paz,
se constrói todo dia e a cada geração! Todos, civis e militares, devemos
compromissos com sua sustentação.
Nossa história familiar é uma
entre tantas registradas em livros e exposições. Aqui, em Brasília, a exposição
sobre o calvário de Frei Tito pode ser mais uma lição sobre o período que se
deve investigar.
Em março desse ano, na inauguração
da exposição sobre meu pai no Congresso Nacional, ressaltei que há exatos
quarenta anos o tínhamos visto pela última vez. Rubens Paiva, que foi um
combativo líder estudantil na luta 'O Petróleo é Nosso', depois engenheiro
construtor de Brasília, depois deputado eleito pelo povo, cassado e exilado em
1964. Em 1971, era um bem sucedido engenheiro, democrata preocupado com o seu
país e pai de cinco filhos. Foi preso em casa quando voltava da praia, feliz
por ter jogado vôlei e poder almoçar com a família em um feriado. Intimado, foi
dirigindo seu carro, cujo recibo de entrega dias depois é a única prova de que
foi preso. Minha mãe, dedicada mãe de família, foi presa no dia seguinte, com
minha irmã de quinze anos. Ficaram dias no DOI-CODI, um dos cenários de horror
naqueles tempos. Revi minha irmã com a alma partida e minha mãe esquálida. De
quartel em quartel, gabinete em gabinete, passou anos a fio tentando encontrá-lo,
ou pelo menos ter notícias. Nenhuma notícia.
Apenas na inauguração da exposição
em São Paulo, quarenta anos depois, fizemos pela primeira vez um Memorial onde
juntamos família e amigos para honrar sua memória. Descobrimos que a data em
que cada um de nós decidiu que Rubens Paiva tinha morrido variava muito, meses
e anos diferentes... Aceitar que ele tinha sido assassinado era matá-lo mais
uma vez.
Essa cicatriz fica menos dolorida
hoje, diante de mais um passo para que nada disso se repita, para que o Brasil
consolide sua democracia e um caminho para a paz.
Excelentíssima presidenta: temos
muita coisa em comum, além das marcas na alma do período de exceção e de sermos
mulheres, mães, funcionárias públicas. Compartilhamos os direitos humanos como referência
ética e para as políticas públicas para o Brasil. Também com dezenove anos me
envolvi com movimentos de jovens que queriam mudar o país. Enquanto esperava
essa cerimônia começar, preparando o que ía falar, lembrava de como essa
mobilização começou. Na direitoria do recém-fundado DCE Livre da USP Alexandre
Vannucchi Leme, um dos jovens colegas da USP sacrificados pela ditadura, ajudei
a organizar a primeira mobilização nas ruas desde o AI-5, contra prisões
arbitrárias de colegas e pela anistia aos presos políticos. Era maio de 1977 e,
até sermos parados pelas bombas do coronel Erasmo Dias, andávamos pacificamente
pelas ruas do centro distribuindo uma carta aberta à população cuja palavra de
ordem era
HOJE, CONSENTE QUEM CALA.
Acho
essa carta absolutamente adequada para expressar nosso desejo hoje, no ato que
sanciona a Comissão da Verdade. Para esclarecer
de fato o que aconteceu nos anos de chumbo, quem calar consentirá,
não é mesmo?
Se a Comissão da Verdade não tiver
autonomia e soberania para investigar, e uma grande equipe que a auxilie em seu
trabalho, estaremos consentindo. Consentindo, quero ressaltar, seremos
cúmplices do sofrimento de milhares de famílias ainda afetadas por essa herança
de horror que agora não está apoiada em leis de exceção, mas segue
inquestionada nos fatos.
A nossa carta de 1977, publicada
na primeira página do jornal O Estado de São Paulo no dia seguinte, expressava
a indignação juvenil com a falta de democracia e justiça social, que seguem nos
desafiando. O Brasil foi o último país a encerrar o período de escravidão, os
recentes dados do IBGE confirmam que continuamos um país rico, mas absurdamente
desigual... Hoje somos o últimos país a, muito timidamente mas com muita
esperança, começar a fazer o que outros países que viveram ditaduras no mesmo
período fizeram. Somos cobrados pela ONU, pelos organismos internacionais e até
pela Revista Economist, a avançar nesse processo. Todos concordam que
restabelecer a verdade e preservar a memória não é revanchismo, que
responsáveis pela barbárie sejam julgados, com o direito à defesa que os presos
políticos nunca tiveram, é fundamental para que os torturadores de hoje não se
sintam impunes para impedir a paz e a justiça de todo dia. Chile e Argentina já
o fizeram, a África do Sul deu um exemplo magnífico de como enfrentar a verdade
e resgatar a memória. Para que anos de chumbo não se repitam, para que cada
geração a valorize.
Termino insistindo que a
DEMOCRACIA SE CONSTRÓI E RECONSTRÓI A CADA DIA. Deve ser realizada e
reconstruída a CADA GERAÇÃO.
E que hoje, quem cala, consente,
mais uma vez.
Obrigada. Vera Paiva (filha de
Rubens Paiva).
Belo Horizonte, novembro
de 2011
Instituto Helena Greco de
Direitos Humanos e Cidadania/IHG