terça-feira, 22 de novembro de 2011

VERA PAIVA PROIBIDA DE FALAR NA COMISSÃO DA VERDADE


PROIBIÇÃO DO DISCURSO DE VERA PAIVA
NA SANÇÃO DA COMISSÃO DA VERDADE

        Nós, do IHG, sabemos muito bem quem construiu esta lambança toda, desde a concepção da Comissão da Inverdade e da Injustiça espúria que foi sancionada na última 6a feira (18/11/2011). Dilma Roussef se recusou terminantemente O TEMPO TODO a receber os familiares de mortos e desaparecidos políticos e os movimentos de direitos humanos para ouvi-los: nenhuma das nossas propostas foi contemplada.

        Por outro lado, teve a interlocução mais aberta e subserviente possível com os generais e fascistas de plantao e acatou TODAS as suas sugestões. E, agora, impediu a nossa companheira Vera Paiva - filha do desaparecido político Rubem Paiva - de se manifestar na cerimônia de sanção para não constranger os militares (?????????????????????????).

        Quanto a este incidente (?), o menino de recado dos generais foi José Genoíno - que tem ampla folha de serviços prestados às Forças Armadas -, mas a responsabilidade é da presidência da república.

        Fazemos nossas as palavras do companheiro Pedro Pomar:
"Todos estamos de pleno acordo quanto ao triste papel desempenhado pelo sr. Genoíno, o estafeta dos generais. Mas, que diabo, o sr. Genoíno não decide coisa alguma! Ele é um mero assessor do ministro da Defesa.
A questão principal, para mim, não é a reiteração da patética trajetória de vida deste cavalheiro. Isso já são favas contadas. A questão principal é: a comandante-em-chefe das forças armadas, uma vez mais, deixou-se comandar por aqueles que deveriam obedecer as ordens dela. Isso sim é grave, muito grave para a democracia.

        Genoíno foi o portador da chantagem. A responsabilidade maior é de quem anuiu, de quem tem poder para demitir ou mandar prender, mas consentiu em permitir essa nova himilhação da sociedade civil brasileira pelos chefes fardados. Isto sim é de doer. Isto é trágico."

        A seguir, o IHG publica o discurso não pronunciado da companheira Vera Paiva:

Sexta feira, 18 de novembro de 2011, 11:00, Palácio do Planalto, Brasília

        Excelentíssima Sra. Presidenta Dilma Roussef, querida ministra dos Direitos Humanos Maria do Rosário. Demais ministros presentes. Senhores representantes do Congresso Nacional, das Forças Armadas. Caríssimos ex-presos políticos e familiares de desaparecidos aqui presentes, tanto tempo nessa luta.

        Agradecemos a honra, meu filho João Paiva Avelino e eu, filha e neto de Rubens Paiva, de estarmos aqui presenciando esse momento histórico e, dentre as centenas de famílias de mortos e desaparecidos, de milhares de adolescentes, mulheres e homens presos e torturados durante o regime militar, o privilégio de poder falar.

        Ao enfrentar a verdade sobre esse período, ao impedir que violações contra os direitos humanos de qualquer espécie permaneçam sob sigilo, estamos mais perto de enfrentar a herança que ainda assombra a vida cotidiana dos brasileiros. Não falo apenas do cotidiano das famílias marcadas pelo período de exceção. Incontáveis famílias ainda hoje, em 2011, sofrem em todo o Brasil com prisões arbitrárias, sequestros, humilhação e tortura. Sem advogado de defesa, sem fiança. Não é isto que está em todos os jornais e na televisão quase todo dia, denunciando, por exemplo, como se deturpa a retomada da cidadania nos morros do Rio de Janeiro? Inúmeros dados indicam que, especialmente brasileiros mais pobres e mais pretos, ou interpretados como homossexuais, ainda são cotidianamente agredidos sem defesa nas ruas, ou são presos arbitrariamente, sem direito ao respeito, sem garantia de seus direitos mais básicos à não discriminação e à integridade física e moral que a Declaração de Direitos Humanos consagrou na ONU depois dos horrores do nazismo, em 1948.

        Isso tudo continua acontecendo, Exma. Presidenta. Continua acontecendo pela ação de pessoas que desrespeitam sua obrigação constitucional e perpetuam ações herdeiras do Estado de exceção que vivemos de modo acirrado de 1964 a 1988.

        O respeito aos direitos humanos, o respeito democrático à diferença de opiniões, assim como a construção da paz, se constrói todo dia e a cada geração! Todos, civis e militares, devemos compromissos com sua sustentação.

        Nossa história familiar é uma entre tantas registradas em livros e exposições. Aqui, em Brasília, a exposição sobre o calvário de Frei Tito pode ser mais uma lição sobre o período que se deve investigar.

        Em março desse ano, na inauguração da exposição sobre meu pai no Congresso Nacional, ressaltei que há exatos quarenta anos o tínhamos visto pela última vez. Rubens Paiva, que foi um combativo líder estudantil na luta 'O Petróleo é Nosso', depois engenheiro construtor de Brasília, depois deputado eleito pelo povo, cassado e exilado em 1964. Em 1971, era um bem sucedido engenheiro, democrata preocupado com o seu país e pai de cinco filhos. Foi preso em casa quando voltava da praia, feliz por ter jogado vôlei e poder almoçar com a família em um feriado. Intimado, foi dirigindo seu carro, cujo recibo de entrega dias depois é a única prova de que foi preso. Minha mãe, dedicada mãe de família, foi presa no dia seguinte, com minha irmã de quinze anos. Ficaram dias no DOI-CODI, um dos cenários de horror naqueles tempos. Revi minha irmã com a alma partida e minha mãe esquálida. De quartel em quartel, gabinete em gabinete, passou anos a fio tentando encontrá-lo, ou pelo menos ter notícias. Nenhuma notícia.

        Apenas na inauguração da exposição em São Paulo, quarenta anos depois, fizemos pela primeira vez um Memorial onde juntamos família e amigos para honrar sua memória. Descobrimos que a data em que cada um de nós decidiu que Rubens Paiva tinha morrido variava muito, meses e anos diferentes... Aceitar que ele tinha sido assassinado era matá-lo mais uma vez.

        Essa cicatriz fica menos dolorida hoje, diante de mais um passo para que nada disso se repita, para que o Brasil consolide sua democracia e um caminho para a paz.

        Excelentíssima presidenta: temos muita coisa em comum, além das marcas na alma do período de exceção e de sermos mulheres, mães, funcionárias públicas. Compartilhamos os direitos humanos como referência ética e para as políticas públicas para o Brasil. Também com dezenove anos me envolvi com movimentos de jovens que queriam mudar o país. Enquanto esperava essa cerimônia começar, preparando o que ía falar, lembrava de como essa mobilização começou. Na direitoria do recém-fundado DCE Livre da USP Alexandre Vannucchi Leme, um dos jovens colegas da USP sacrificados pela ditadura, ajudei a organizar a primeira mobilização nas ruas desde o AI-5, contra prisões arbitrárias de colegas e pela anistia aos presos políticos. Era maio de 1977 e, até sermos parados pelas bombas do coronel Erasmo Dias, andávamos pacificamente pelas ruas do centro distribuindo uma carta aberta à população cuja palavra de ordem era
        HOJE, CONSENTE QUEM CALA.
        Acho essa carta absolutamente adequada para expressar nosso desejo hoje, no ato que sanciona a Comissão da VerdadePara esclarecer de fato o que aconteceu nos anos de chumbo, quem calar consentirá, não é mesmo?

        Se a Comissão da Verdade não tiver autonomia e soberania para investigar, e uma grande equipe que a auxilie em seu trabalho, estaremos consentindo. Consentindo, quero ressaltar, seremos cúmplices do sofrimento de milhares de famílias ainda afetadas por essa herança de horror que agora não está apoiada em leis de exceção, mas segue inquestionada nos fatos.

        A nossa carta de 1977, publicada na primeira página do jornal O Estado de São Paulo no dia seguinte, expressava a indignação juvenil com a falta de democracia e justiça social, que seguem nos desafiando. O Brasil foi o último país a encerrar o período de escravidão, os recentes dados do IBGE confirmam que continuamos um país rico, mas absurdamente desigual... Hoje somos o últimos país a, muito timidamente mas com muita esperança, começar a fazer o que outros países que viveram ditaduras no mesmo período fizeram. Somos cobrados pela ONU, pelos organismos internacionais e até pela Revista Economist, a avançar nesse processo. Todos concordam que restabelecer a verdade e preservar a memória não é revanchismo, que responsáveis pela barbárie sejam julgados, com o direito à defesa que os presos políticos nunca tiveram, é fundamental para que os torturadores de hoje não se sintam impunes para impedir a paz e a justiça de todo dia. Chile e Argentina já o fizeram, a África do Sul deu um exemplo magnífico de como enfrentar a verdade e resgatar a memória. Para que anos de chumbo não se repitam, para que cada geração a valorize.

        Termino insistindo que a DEMOCRACIA SE CONSTRÓI E RECONSTRÓI A CADA DIA. Deve ser realizada e reconstruída a CADA GERAÇÃO.

        E que hoje, quem cala, consente, mais uma vez.

        Obrigada. Vera Paiva (filha de Rubens Paiva).

Belo Horizonte, novembro de 2011
Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania/IHG

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