segunda-feira, 25 de junho de 2012

PRIMEIRA REUNIÃO DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE COM OS FAMILIARES DE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS

Reunião histórica entre a CNV e os familiares 


de mortos e desaparecidos políticos: 11/6/12

Pedro Pomar ( neto de Pedro Ventura Pomar, assassinado em 1976, na chacina da Lapa, São Paulo - SP).

Participaram da reunião de 11/6 em São Paulo com familiares de mortos e desaparecidos políticos vítimas da Ditadura Militar, no Gabinete Regional da Presidência da República, cinco membros da Comissão Nacional da Verdade (CNV): Gilson Dipp (atual coordenador), José Carlos Dias, Maria Rita Khel, Paulo Sérgio Pinheiro, Rosa Cardoso.

Os familiares eram cerca de 60. Parte deles era de São Paulo e parte veio do Rio de Janeiro, do Distrito Federal, de Pernambuco, Goiás e outros Estados.
Quem instalou a reunião formalmente foi Gilson Dipp. Mas ela teve início, efetivamente, quando Rosa Cardoso leu um texto de sua autoria, saudando os familiares. Depois manifestou-se Paulo Sérgio Pinheiro, que, após sustentar que não há problemas de relacionamento entre os membros da CNV, discorreu sobre o “mandato” da comissão.
Baseando-se no parecer de Eduardo Gonzalez Cueva (ICTJ), embora sem citá-lo, Paulo Sérgio disse que, pelo fato de haver sido instituída pelo poder legislativo e não pelo executivo, a CNV dispõe de “maiores poderes operativos” do que a maioria de suas congêneres (das 44 existentes, 30 foram instituídas pelo executivo). Assim, a CNV, afirmou, terá poderes de investigação semelhantes aos do Ministério Público Federal. Também a Lei do Acesso facilitará o trabalho da comissão: a CNV “tem acesso a qualquer documento”, disse ele, independentemente da sua classificação (sigiloso, ultra-sigiloso etc.). A título de comparação, lembrou que a Comissão da Verdade argentina “não teve acesso a nenhum documento das FFAA argentinas”.  Ele citou ainda o “enorme acervo” de informações colhidas pelas comissões da Anistia e Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Paulo Sérgio comentou que a Comissão Rettig (Chile) não tinha poderes jurisdicionais e que “nenhuma comissão tinha poder para punir”. Disse que a CNV dispõe de um “mandato taxativo para esclarecer graves violações de direitos humanos” e que será “neutra” no tocante à Lei da Anistia. “A lei é neutra, a meu ver”, afirmou, referindo-se à lei que criou a CNV.
Ele revelou que a CNV ainda está “desenvolvendo metodologias” e que pretende definir uma agenda de visitas aos Estados. “Nós não vamos trabalhar sozinhos”, enfatizou, observando que existem comissões da verdade em vários Estados.
“Dois lados” e “revanchismo”
Encerrada a exposição de Paulo Sérgio, foi aberta a palavra aos familiares. O primeiro a falar foi Ivo Herzog, filho de Vladimir Herzog, que fez duas indagações à comissão: qual a posição da CNV relativamente à questão dos “dois lados”; e se a CNV pretende divulgar um relatório mensal de atividades.
Em seguida, Suzana Lisbôa leu carta aberta assinada por um grupo de familiares, que propõe à CNV que investigue os crimes da Ditadura Militar (1964-85) com a finalidade de identificar autores intelectuais e materiais das atrocidades. A carta sugere um roteiro de trabalho, que as reuniões sejam públicas, e solicita aos integrantes da CNV “que não mais usem o termo revanchismo quando se referirem à nossa busca por Justiça” (vide íntegra da carta e seus signatários ao final).
Luis Rabelo, filho de Jorge Leal Gonçalves, informou que recebeu um atestado de óbito do seu pai sem informação alguma e que isso é inaceitável: “Enquanto houver um atestado como esse, a Ditadura não acabou”. 

Iara Xavier, familiar de Iuri e Alex Xavier, criticou a CNV: “Nós esperávamos ouvir um plano de trabalho mais concreto”. Ela propôs focar os trabalhos da comissão nos mortos e desaparecidos; realizar audiências públicas (e não sigilosas); que todos os familiares possam depor, e que sejam ouvidos “com todo o tempo, cuidado e respeito que merecem”. Ela ainda dirigiu as seguintes questões aos comissários: qual a estrutura disponível?, que membro entre vocês vai ser o canal com os familiares?, como vai ser a equipe de apoio, antropólogos forenses, se vai haver convênios para extração e identificação de DNA.

A palavra voltou à CNV, para responder e comentar a primeira rodada de manifestações dos familiares. Paulo Sérgio Pinheiro respondeu à pergunta de Ivo Herzog: “Esta história dos ‘dois lados’ não pertence a nós”, declarou. Enquanto falava foi interrompido por José Carlos Dias, que estava a seu lado na mesa. O ex-ministro da Justiça fez questão de negar que defenda a investigação dos “dois lados”, e disse: “Saiu uma declaração na Folha [de S. Paulo] como se fosse minha”. Em seguida Paulo Sérgio reiterou que a “opinião unânime da comissão” é que sejam investigados apenas os crimes do Estado.
Paulo Sérgio respondeu à crítica de Iara: “É óbvio que o plano de trabalho não seria apresentado aqui hoje”. Ele disse, porém, que existe “clareza” na CNV quanto a “dar prioridade aos [casos de] mortos e desaparecidos”. Também manifestou concordância com o teor da carta lida por Suzana. Sobre tornar públicas as audiências, pedido apresentado na carta e também por Iara, declarou: “Não sabemos se todas as reuniões vão ser públicas”. 
Dossiê dos mortos e desaparecidos
Nova rodada de intervenções dos familiares teve início com Bernardo Kucinski, irmão de Ana Rosa Kucinski. “O caráter não público é a questão central”, criticou. Ele defendeu que todas as reuniões da CNV devem ser abertas, “inclusive esta”.
Em seguida falou Marta Nehring, filha de Norberto Nehring, que levantou problemas criados por torturadores que alegam “danos de imagem” em filmes e outras obras que falem de Brilhante Ustra e outros.
Victoria Grabois, que perdeu o pai, Mauricio Grabois, o marido, Gilberto Olimpio, e o irmão André Grabois no Araguaia, manifestou-se opinando que a CNV vai “dar em nada”, criticando as omissões do governo ao longo de décadas. Ela fez uma fala longa e emocionada. Lembrou que Gilson Dipp, membro da comissão, atuou como perito do Brasil no julgamento do caso dos guerrilheiros desaparecidos do Araguaia na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Rosalina Santa Cruz, irmã de Fernando Santa Cruz, relatou: “Minha mãe fará 100 anos de idade quando se completarem os trabalhos da CNV”. Disse que ela e os irmãos conversaram sobre se deveriam contar à mãe, e como contar, a declaração do ex-delegado Cláudio Guerra de que o corpo de Fernando foi incinerado, chegaram a pensar em levar uma ambulância, para o caso de que ela passasse mal. Finalmente contaram à mãe, e a resposta dela foi: “Já apuraram? Enquanto não apurarem, não quero saber”.
 

Amélia Telles fez uma rápida fala e entregou a cada um dos comissários um exemplar do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos, edição de 2009, explicando tratar-se de um produto do trabalho dos familiares que poderá contribuir com a CNV.
 
Cândida Cappello Guariba, neta de Heleny Guariba,
desaparecida em 1971, leu um texto em que elencou uma série de pedidos: que se inclua na conta de mortos e desaparecidos políticos os camponeses (em torno de 250) e os indígenas (em torno de 2.000); que se faça uma lista de “afetados/vítimas” incluindo torturados, perseguidos e exilados (estima-se em torno de 30.000 o número de torturados); que se faça uma lista de torturadores; que se faça uma lista de colaboradores (jornais, tvs, empresas, multinacionais) e de como se deu sua atuação; que se esclareça qual foi o apoio internacional dado ao golpe; que se esclareça como se deu a Operação Condor; que se faça uma revisão histórica do que significou o golpe de 1964: como e por quem o golpe foi dado? quem o planejou? quais foram as partes envolvidas? etc. Dirigiu-se a Gilson Dipp: “Parece que o senhor participou do julgamento na CIDH, gostaria que esclarecesse qual foi sua atuação/papel lá”. Pediu ainda que seja “quebrado o pacto do possível no qual esta comissão foi constituída; que se saiba quem são os culpados impunes das barbáries cometidas; que não haja mais desaparecidos nessa história”.

Filha de guerrilheiro seqüestrada

Manoel Cirillo, ex-preso político, contou a história de seu tio, João Carlos Cavalcanti Reis, que foi torturado e morto. “O corpo do meu tio é um verdadeiro corpo de delito, porque ele foi entregue em caixão lacrado. Eu exijo a exumação. O Estado diz que ele morreu num tiroteio e ele entrou no IML de cueca e meia. Eu fui torturado e sei que ninguém é torturado de roupa”. Cirillo quer que sua condenação pelo sequestro do embaixador americano seja retirada, já que lutava pelo legítimo direito de restaurar a democracia.
Igor Grabois afirmou que prevalece ainda hoje a verdade da Ditadura Militar, e que existe uma preocupação “de descaracterizar o crime de ocultação de cadáver”.
Maria Eliane Pinheiro, irmã de Antonio Theodoro de Castro, desaparecido do Araguaia, revelou que sua família descobriu uma possível filha dele, sequestrada pelos militares. Colheram DNA, que apontou 90% de possibilidade de ser idêntico ao de Theodoro (comparado ao dos irmãos). Contudo, o governo não quer fazer contraprova. Dizem que há oito filhos sequestrados de guerrilheiros do Araguaia.
José Dalmo Ribas questionou a efetiva capacidade de dedicação dos membros da CNV à tarefa que têm pela frente: “Qual é o tempo de que vocês dispõem, para chamar para si uma missão de tal envergadura?”
 

Aldo Balboni, irmão de Luiz Fogaça Balboni, falou da importância de resgatar a memória. Com a indenização recebida, a família construiu o “Parque do Zizo”, em São Miguel Arcanjo, pequena cidade onde Luiz cresceu e onde foi taxado de terrorista.

“No sábado faz 40 anos que minha irmã Maria Lúcia Petit foi executada, ela tinha 22 anos”, disse Laura Petit, que perdeu três irmãos no Araguaia. “O Estado brasileiro continua até hoje em guerra contra nós”, afirmou, após relatar as dificuldades de sua família para obter informações. Falou do julgamento da CIDH, criticando o Brasil: “O Estado colocou como seu representante não a Secretaria de Direitos Humanos, mas o Ministério da Defesa. O sr. Gilson Dipp atuou como perito do Estado contra nós”. Laura disse também que, numa conversa com uma pessoa do governo, esta lhe disse: “Estamos no mesmo barco”, ao que ela respondeu: “Não, estamos em barcos diferentes, e opostos”.


Pacto com os militares
Vera Paiva, filha do ex-deputado Rubens Paiva, falou da importância do momento. Fez referência à Comissão da Verdade da USP. Citou o caso de Ana Rosa Kucinski, demitida pela Congregação do Instituto de Química da USP por abandono de emprego quando já havia sido assassinada, e recomendou a todos a leitura de K., livro de Bernardo Kucinski.
A viúva de Virgílio Gomes da Silva contou sobre os esforços para localização do corpo: “Ver escavação é a coisa mais dolorosa que tem”, relatou.
Virgílio Gomes da Silva Filho protestou contra o que chamou de hipocrisia: “Os assassinos estão aí. A gente não tem que provar mais nada. As pessoas [os torturadores] têm que pagar a dor de 40 anos, pagar as humilhações. O povo tem o direito de se levantar [contra a Ditadura Militar]”.
Angela Mendes de Almeida, que foi companheira de Luiz Merlino, falou da relação entre a impunidade dos torturadores que agiam a serviço da Ditadura Militar e, na atualidade, as políticas de extermínio de pobres e negros.
Pedro Pomar, neto do ex-deputado Pedro Ventura Felipe Pomar, considerou um avanço a realização da reunião entre CNV e familiares, lembrando que desde o início da tramitação do projeto de lei os familiares tentaram, mas não conseguiram ser recebidos pela presidenta Dilma Rousseff. Falou do pacto do governo com os militares, que conseguiu embutir no projeto um “cavalo de Tróia”, a idéia da “reconciliação nacional”. Enfatizou que os familiares não desejam reconciliar-se com assassinos e torturadores. Afirmou que a CNV só alcançará resultados consistentes se enfrentar e superar o pacto com os militares. Reiterou a proposta feita por Cândida Guariba, de que Dipp explicasse seu papel na Costa Rica, e informou a ele que o Comitê Paulista MVJ pediu à presidenta que revisse sua nomeação como membro da comissão. 
Também se manifestaram Ivan Akselrud Seixas, Lorena Moroni Girão Barroso e outra familiar do Rio de Janeiro.
Esclarecimentos de Gilson Dipp
Gilson Dipp atendeu aos pedidos de esclarecimento. Primeiro contou que seu pai “foi colega de turma de João Goulart, foi deputado pelo PTB de Jango e Brizola”, e que seu irmão “é deputado pelo PDT no Rio Grande do Sul”. Depois disse ter atuado apenas como perito na CIDH, no caso do Araguaia, com a única finalidade de explicar como funcionam, no sistema legal brasileiro, as Ações por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs). Ele disse que não entrou no mérito da ADPF 153, relacionada à Lei da Anistia, julgada pelo STF em 2010. “Em 2009, por proposta minha, o STJ convidou e trouxe a CIDH para fazer uma; sessão de julgamento no Brasil”, contou. “O Brasil não cumpre tratados internacionais. O Brasil deve sim se sujeitar às prescrições da Corte Interamericana”, declarou.
Antes de a reunião terminar, Rosa Cardoso propôs que os comentários dos familiares fossem incorporados como observações que a CNV levará em conta, e que uma nova reunião seja realizada dentro de dois meses. José Carlos Dias, porém, afirmou que talvez seja contraproducente fazer uma nova reunião nesse prazo, se não houver nada de novo a apresentar aos familiares. Paulo Sérgio Pinheiro, por sua vez, propôs que os familiares escolhessem representantes. Ambas as questões ficaram em aberto.

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