A POLÍTICA DO MEDO E O ESTADO DE EXCEÇÃO
Slavoj Zizek diz em seu livro “Violência’’
que a variedade predominante da política atualmente é biopolítica pós-política”. A pós-política é a negação aparente dos
combates ideológicos para se concentrar na gestão e administração
especializada, enquanto a biopolítica designa a regulação da segurança e do
bem-estar das vidas humanas. Uma vez que a vida se despolitizou, a única maneira
de mobilizar ativamente as pessoas é através do medo.
‘’É evidente que hoje as duas dimensões se sobrepõem: quando se
renuncia às grandes causas ideológicas, tudo o que resta é a administração
eficaz da vida... Ou quase isso.”
(ZIZEK, 2014: 45; 46)
O medo se tornou o princípio
mobilizador na atualidade: medo dos traficantes; medo dos muçulmanos; medo da
criminalidade; medo do assédio e de modo sutil, ou não, o medo dos negros e
pobres.
I
No dia 27/03 (sexta-feira), o
jornal Estado de Minas publicou uma reportagem onde denunciava o tráfico de
drogas no prédio da FAFICH, na UFMG. Segundo o diário, o DA do prédio servia
como ponto de venda: de maconha, cocaína e LSD.
Os jornalistas não economizaram
termos para estigmatizar o local, escreveram: sujo; escuro; sombrio; se ouve
funk; “boca de fumo” e outros termos negativos. Como se não bastasse, uma nota
no canto inferior intitulada ‘’Outros tempos’’ defendia a maior tranquilidade
da FAFICH nos tempos da ditadura militar, como se fosse possível a tranquilidade
nesses “tempos”. Alguns defenderam a presença da Polícia Federal e Militar no
campus para garantir a chamada segurança.
A insistência do diário na
questão foi tanta que nas edições dos dias 28/03 e 29/03, sábado e domingo, a
reportagem ganhou complementos. O diretor do prédio concedeu entrevista, alguns
alunos comentaram e sugestões foram lançadas.
É totalmente questionável a
índole do Estado de Minas, o jornal é alinhado aos setores mais reacionários de
Minas Gerais. É controlado por famílias de políticos tradicionais e de direita.
Cabem algumas questões: quem os convidou
ou sugeriu a reportagem? Quais os verdadeiros interesses com a veiculação do
“caso FAFICH”?
II
O tráfico é um problema enorme no
país e no mundo e deve ser debatido. É preciso colocar em jogo a política de
“guerra às drogas”, as mortes relacionadas ao conjunto somente crescem sem
perspectiva de redução.
A “guerra às drogas” desde seu
início tinha um objetivo e objetos reais: ser uma política de Estado
higienista, contra os negros, pobres e moradores da periferia e das favelas
como objeto de criminalização.
Com o surgimento do
neoliberalismo e o fim do Estado Social nos países então do Primeiro Mundo, as
políticas de geração de emprego, auxílio de renda, inclusão social e subsistência
desintegraram. O Estado-providência se tornou Estado-penitência. Para o
sociólogo Loic Wacquant :
“A penalidade neoliberal
apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um "mais
Estado" policial e penitenciário o "menos Estado" econômico e
social que é a própria
causa
da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva
em todos os países, tanto do
Primeiro como do Segundo Mundo. Ela reafirma a onipotência do Leviatã no
domínio restrito
da manutenção da ordem pública - simbolizada pela luta contra a delinquência de
rua - no momento em que este se afirma e verifica-se incapaz de conter a
decomposição do trabalho
assalariado e de refrear a hipermobilidade do capital, as quais, capturando-a
como tenazes,
desestabilizam a sociedade inteira.” (WACQUANT, 1999: 3)
Nos países de Primeiro Mundo a
política tinha um só nome que regia a “carta magna” do governo, tolerância zero. O vale-tudo do Estado
mínimo havia começado, sua influência foi e é global.
Os países de Terceiro Mundo
foram condicionados a aplicar a cartilha dos “Chicago boys”, porém
diferentemente dos EUA ou do Reino Unido, a maioria não havia passado por
experiências de Estado Social, logo as consequências foram extremamente
nefastas: aumento do desemprego; flexibilização dos direitos trabalhistas;
crescimento da desigualdade social e econômica; favelização das cidades e
aumento da criminalidade foram alguns dos efeitos do chamado “fundamentalismo
de mercado”.
A introdução baseada no texto do
filósofo Zizek ajuda a compreender a escalada de violência contra os pobres e
negros do ponto de vista ideológico. A URSS ruía, era o fim do socialismo real
e da Guerra Fria, as potências hegemônicas venceram a batalha, mas perderam o
“inimigo a ser combatido”, não se tinham mais comunistas. Entretanto as forças
políticas precisavam mobilizar as massas para uma nova direção de legitimidade,
era preciso permitir a aplicação de medidas que facilitassem o fluxo do capital
que o keynesianismo interferia. (HARVEY,
2011: 16)
Cortes de gastos; desemprego e
aumento da criminalidade, os governos não podiam escancarar a culpa deles nesse
processo, recorreram então às camadas já marginalizadas para justificar os
problemas, ou seja, culpem os negros e pobres pelas mazelas, eles utilizam
drogas e traficam. O aparato policial aumentou juntamente com a criação de um
Estado de exceção permanente nas periferias e favelas. O neoliberalismo
destruía as poucas aspirações democráticas da sociedade. Vale resaltar que o
mercado de drogas, ainda que ilegal, movimenta um capital maior que o PIB de
muitos países. (Harvey)
Atualmente a política de “guerras
às drogas” é global, alguns países tentam alternativas, mas a predominância
efetiva é do combate militar. Os efeitos são variados e nefastos para o mundo,
à violência cresce, nas palavras de um policial brasileiro, alguém intergrado
ao sistema:
“A
guerra às drogas mata mais que seu inimigo, o tráfico”.
Essa política neoliberal e
fascista precisa ser desfetichizada e debatida, ela não é exemplo a ser seguido
para solucionar o tráfico. A quem
interessa toda essa violência sem fim e sem perspectiva de resolução?
III
Existem ao que parece dois
problemas visíveis no “caso FAFICH”. O primeiro se refere à questão externa à universidade, o tráfico de drogas e o modo
como a questão é encarada: guerra. O segundo é relacionado ao modo de ocupação
dos jovens da periferia e favela no espaço “público”, eles vivem um exílio onde
moram e as poucas perspectivas que são oferecidas a eles é se envolver no
tráfico como forma de ascensão, ao menos na ilusão. Numa sociedade onde a
ocupação do espaço é firmada por meio do espetáculo do consumo e as relações
sociais são meros espetáculos (DEBORD, 1967: 14) quais concepções se esperam
dos jovens que estão inseridos numa exclusão colossal e veem como significado
mor do mundo o consumo, a vida como mercadoria?
Parte do circuito inferior
(SANTOS, 1978: 60) insiste no acesso aos espaços reservados à classe-média
branca do consumo ; entretanto são impedidos de consumir, ou seja, de se
incluírem nas relações sociais. O Estado de exceção é criado desde os espaços
do consumo até a moradia.
As Universidades precisam se
abrir às cidades, para seus antagonismos e conflitos. Casos como esse, que
espantam certa parcela da opinião e da universidade mostram como o meio
acadêmico ainda é alienado “do além-muro”.
A presença dessa população estigmatizada em territórios dos quais está
excluída, assim como as medidas de controle e higienização que são tomadas
contra ela – especialmente no âmbito de uma faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
- podem ser pensadas segundo a visão crítica da socióloga Vera MALAGUTI sobre o papel das
UPPs , e o apoio de intelectuais, jornalistas e artistas à ocupação dos morros cariocas:
Regular
coexistências nos territórios das desigualdades não é também tarefa fácil, num
mundo que já nem deseja transformar-se, já deixou para trás uma utopia de
escola aonde os jovens possam desfrutar de suas potências, ou de uma
sociabilidade prazerosa entre diferentes na construção de redes coletivas de
apoio e cuidado. É porque antes da ocupação territorial já se tinham ocupado as
almas. Passamos muito rapidamente da naturalização da truculência contra os
pobres ao seu aplauso.
Aquilo que se debatia em 68 permanece atual: como
as universidades se perdem e produzem um fim em si mesmas, longe da realidade e
da luta política emancipatória. Os movimentos estudantis precisam se mobilizar
e impedir que seja construído um Estado de Sítio dentro da UFMG. Os que vieram traficar e foram
estigmatizados pelo diário precisam exigir a verdadeira ocupação, não podem ser
sujeitados a uma perversão do exílio socioespacial (SANTOS, 2000). As drogas
são muito mais complexas do que a
simples guerra construída em seu entorno para legitimar o controle sobre a
vida. O debate deve ocorrer.
REFERÊNCIAS:
DEBORD, Guy. “A sociedade do espetáculo: comentários
sobre a sociedade do espetáculo”. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
HARVEY, David. “O enigma do capital e as crises do
capitalismo”. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2014.
MALAGUTI BATISTA, Vera. “O Alemão é muito mais complexo”, disponível
em http://www.anf.org.br/o-alemao-e-muito-mais-complexo/.
SANTOS, Milton. “Pobreza Urbana”. 3ª Ed. São Paulo:
Edusp, 2013.
_______ .
_______ . “Por uma outra globalização: do
pensamento único à consciência universal”. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Record,
2001.
ZIZEK, Slavoj. “Violência: seis reflexões laterais”.
1ªEd. São Paulo: Boitempo, 2014.
WACQUANT, Loïc. “As prisões da miséria”. 1ª Ed .Rio de Janeiro: Zahar, 1999
Artigo de João Pedro Moraleida (estudante do IGC/UFMG e membro do Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania - BH/MG)
Abril de 2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário