“Fôssemos
infinitos, tudo mudaria. Como somos finitos, muito permanece”.
Bertold Brecht
O golpe militar de 1964 implantou o Estado de
Segurança Nacional. Tinha como lemas: Desenvolvimento
e Segurança - Deus, Família e Liberdade.
A partir do golpe, foram 21 anos de ditadura sangrenta (1964-1985). Depois vieram 39 anos (1985-2024) de algo que
a cultura política hegemônica chama de democratização.
Trata-se na verdade da longa transição pactuada, tutelada e sem ruptura ainda
em curso. Não é a democracia que tem sido consolidada, mas a normalização da exceção brasileira - uma
normalização defeituosa que preserva o
terrível legado da ditadura.
O
caráter de classe do golpe e da ditadura é evidente. É a implementação do projeto
burguês de modernização fascista do capitalismo: aprofundamento da aceleração da acumulação
capitalista com escalada exponencial da repressão e da exploração da classe
trabalhadora. Veio para destroçar o que foi conquistado na luta operária
desde pelo menos os anos 1910. Sua composição é a mesma que hoje está no poder:
a burguesia financeira, os empresários, os latifundiários, as empreiteiras, as
mineradoras, a mídia corporativa, as Forças Armadas, o fundamentalismo cristão.
A
ditadura brasileira é o grande paradigma das ditaduras da América Latina dos
anos 1960, 1970, 1980. Em longevidade, só perde para a do Paraguai (1954-1989).
Forjadas na guerra fria, houve forte presença militar, política, financeira, ideológica,
comportamental e cultural do imperialismo estadunidense. O imperialismo francês
trouxe a expertise em torturas e desaparecimentos
adquirida na colonização da Argélia (1830-1962), vencida pelo povo na Revolução
Argelina (1954-1962).
As
ditaduras do Cone Sul da América Latina se uniram na Operação Condor para
trucidar opositores no continente e fora dele. Seu núcleo comum é o terrorismo
de Estado consolidado na Doutrina de Segurança Nacional. Esta preconiza a
eliminação dos inimigos internos e a guerra ideológica permanente contra o
comunismo. Inimigos internos são
as classes perigosas: estudantes, trabalhadoras/es, subversivas/os,
opositoras/es, militantes. São também as classes torturáveis: negras/os, indígenas, quilombolas,
periféricas/os, loucas/os e todes que se diferenciam da normatividade imposta.
Inimigos internos são todas/os que poderiam colocar em risco o desenvolvimento
e a segurança.
As
Forças Armadas construíram colossal aparato repressivo e ubíqua comunidade de informações. O Serviço
Nacional de Informações (SNI) – origem da atual ABIN – foi criado logo depois
do golpe militar. Foram articulados organicamente a Polícia Federal, as
polícias civis e militares, os grupos de extermínio (atuais milícias) e grupos
parapoliciais e paramilitares, como o Comando Caça aos Comunistas (CCC) para extinguir
os inimigos internos. Empresários, latifundiários
e mídia corporativa participaram diretamente da repressão. Centenas de
sindicatos foram fechados, partidos de esquerda e entidades estudantis foram
colocados na ilegalidade. No mesmo dia do golpe, 1º de abril, a sede da União
Nacional dos Estudantes (UNE), na Praia do Botafogo/Rio de Janeiro, foi
queimada. Havia pelo menos 236 centros de
tortura ativos. Neles milhares de pessoas foram presas, torturadas, estupradas,
mortas e desaparecidas. Milhares
foram cassadas, exiladas e banidas. Tortura, extermínio e desaparecimento forçado
foram institucionalizados. Assassinato da memória, mentira organizada, censura,
obscurantismo, ódio mortal aos Direitos Humanos se tornaram políticas de
Estado.
O binômio desenvolvimento
e segurança provocou devastação ambiental e extermínio dos Povos Indígenas e
dos Povos Tradicionais. A Amazônia foi militarizada. Mais de 15 mil indígenas
foram chacinados em apenas duas regiões. Só no Espírito Santo, desapareceram 10
mil quilombolas. Este número, portanto, pode ser muito maior. Foram criados campos
de concentração para os Povos Indígenas, como o Reformatório Krenak
(Resplendor/MG) e a Fazenda Guarani (Carmésia/MG), pertencentes à Polícia Militar/MG
e controlados pela FUNAI. Milhares de trabalhadoras/es
rurais foram mortas/os em todo o Brasil. Foram igualmente fatais o arrocho
salarial, o desemprego e a fome. O Povo Negro foi o mais atingido pela política
econômica, pela violência policial, pelos esquadrões da morte (de novo, as
atuais milícias). Negras/os foram assassinadas/os aos milhares nas favelas, nas
prisões, nos manicômios. Houve profusão de locais de desova e valas comuns
clandestinas. Crianças foram alvos da repressão e do negacionismo sanitário na epidemia
de meningite dos anos 1970.
Além dos 21 anos de ditadura militar, o Brasil tem
no prontuário mais de 500 anos de extermínio dos Povos Indígenas, mais de 350
anos de escravização do Povo Negro e permanente Estado de exceção para a
maioria da população. O Estado tem batido recordes mundiais em crimes contra a
humanidade. Estes cresceram em escala depois da ditadura, assim como sua
invisibilização. Racismo e genocídio do Povo Negro e dos Povos Indígenas são
estruturais e institucionais no Brasil. Este é o país das chacinas periódicas -
tem a polícia militar mais letal do mundo. Só em São Paulo, no governo fascista
de Tarcísio de Freitas (partido Republicanos),
a polícia militar executou 80 pessoas nas Operações
Escudo 1 (julho-agosto/2023) e Escudo
2 (a partir de janeiro/2024). Tais execuções constituem prática rotineira
totalmente normalizada. A guerra ideológica se mantém na forma da mentira organizada,
do negacionismo histórico e do obscurantismo exacerbado. As lutas
populares continuam criminalizadas. O Brasil é campeão mundial em
transfeminicídio. É um dos campeões em feminicídio, violência de gênero e
estupros. Cresce a
guerra generalizada contra os pobres e a política de encarceramento em massa.
Temos a terceira maior população carcerária do planeta – a maioria composta de
negras/os.
O que há de
mais substancial no legado da ditadura sequer foi tangenciado. Os avanços pontuais
no combate a este legado foram arduamente conquistados pelos movimentos
sociais, pelos familiares dos mortos e desaparecidos, pelo
movimento pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, pela luta das entidades
Direitos Humanos e de movimentos de Memória, Verdade e Justiça. Os arquivos da
repressão continuam fechados. O aparato repressivo e o ordenamento
jurídico/legislativo que o sustenta continuam montados. As Forças Armadas, a
ABIN (sucedânea do SNI), a Polícia Federal, as polícias civis e militares, as
guardas municipais, a Força Nacional de Segurança Pública são golpistas e
entusiastas da ditadura. A Doutrina de Segurança Nacional permanece arraigada no
Estado.
Não houve resgate da verdade histórica. As circunstâncias
das mortes e desaparecimentos não foram esclarecidas. Os
familiares não puderam enterrar seus mortos. Não houve responsabilização dos
agentes da ditadura – civis, militares, empresários. Em 2010, com o
indeferimento da ADPF 153, o Supremo Tribunal Federal confirmou a equivocada
interpretação da Lei 6683/1979 (a lei de anistia parcial). Assim, o judiciário
anistiou incondicionalmente torturadores, estupradores, assassinos e
ocultadores de cadáveres de opositoras/es da ditadura. Esqueceu que crimes
contra a humanidade são inanistiáveis, imprescritíveis e inafiançáveis.
A lista de mortos e desaparecidos é
dramaticamente incompleta. O relatório da Comissão Nacional da Verdade –
concluído em 2014 – confirma 434 nomes. Nele não constam os milhares de
indígenas e quilombolas chacinados. Tampouco os milhares de trabalhadores
rurais mortos pela ditadura. Pesquisa recente de Gilney Amorim, ex-preso
político hoje pesquisador da UnB, dá conta de mais 1.634 delas/es.
O pesadelo dos quatro anos do governo Bolsonaro
terminou, mas o fascismo continua a nos cercar por todos os lados. No país de
maior concentração de renda do mundo o neoliberalismo – a nova forma de
totalitarismo – tem sucesso radiante. Isto atinge todas as malhas da sociedade:
o senso comum nunca foi tão rebaixado, as relações de convivência nunca foram
tão aviltadas. Para além da canhestra tentativa de golpe do 8 de janeiro de
2023 – que deve ser radicalmente combatida - o congresso nacional, as
assembleias legislativas, as câmaras de vereadores, os governos estaduais e
municipais estão eivados de fascistas e ultradireitistas. O governador mineiro Romeu
Zema (partido Novo) é outro exemplo gritante. Os milhares de militares que
passaram a ocupar postos-chave no aparelho de Estado – nomeados por Bolsonaro -
ainda não foram de lá removidos. A prisão dos mandantes das execuções de
Marielle e Anderson escancaram a capilaridade sórdida da promiscuidade sistêmica
do aparelho de Estado. Esta capilaridade perpassa o aparato repressivo, o
aparato legislativo/jurídico, o aparato empresarial/midiático, as forças
armadas, as milícias. Isto só é possível porque o totalitarismo de mercado está
instalado com tanta desenvoltura.
A tortura, o extermínio e a estratégia do esquecimento se mantêm como políticas de Estado. Desde
2009, parte dos arquivos da repressão tornada pública se encontra sob a
custódia do Projeto Memórias Reveladas,
do Arquivo Nacional. O governo golpista de Temer e o governo fascista de
Bolsonaro precarizaram ferozmente este projeto. Tal precarização se manteve no governo Lula. Este importante
acervo corre sério risco de se perder. O governo Lula sequer restaurou a
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos
(lei 9140/1995), cancelada por Bolsonaro no final de seu mandato. Tudo isto desemboca na escabrosa declaração
presidencial interditando quaisquer manifestações e/ou declarações oficiais em
repúdio aos 60 anos do golpe militar. Ao não querer “remoer o passado” Lula
reproduz literalmente o tosco jargão das forças armadas contra o revanchismo. Ele fala do lugar de adepto
orgulhoso do pacto de conciliação de classes e de pacificação militarizada: legitima as forças armadas – golpistas
conceitual e historicamente – como poder
moderador guardião das instituições (?).
Os militares continuam a tutelar a transição sem ruptura em curso. Trata-se de
execrável escárnio à memória dos mortos e desaparecidos,
aos familiares e a todas/os que lutam contra o terrorismo de Estado.
Vivemos em um
país inóspito e em um mundo cada vez mais distópico. O genocídio perpetrado
pelo Estado colonial sionista de Israel contra o Povo Palestino – transmitido
em tempo real, ao vivo e em cores – é síntese acabada desta distopia. Contra todo este horror explícito no Brasil e
no mundo devemos reafirmar nossa luta pelos Direitos Humanos entendida como a
mais resoluta negação de todas as formas de exploração e opressão. É imperativa
a luta permanente contra o terrorismo de Estado. É imperativa a luta permanente
por Memória, Verdade e Justiça. Só assim prestaremos o devido tributo e a
devida reparação a todas e todos que tombaram nessa luta durante e depois da
ditadura. Só assim faremos jus à sua
memória e a seu legado. Temos, portanto, longo caminho a percorrer.
GOLPE, DITADURA, TORTURA: NUNCA MAIS!
PELA ABERTURA IRRESTRITA DOS ARQUIVOS
DA REPRESSÃO!
PELA RESOLUÇÃO DEFINITIVA DA QUESTÃO
DOS MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS!
NEM PERDÃO, NEM ESQUECIMENTO, NEM
CONCILIAÇÃO: RESPONSABILIZAÇÃO DOS TORTURADORES E ASSASSINOS DE OPOSITORAS/ES DA
DITADURA E DAQUELES QUE COMETEM CRIMES CONTRA A HUMANIDADE NOS DIAS DE HOJE!
PELO FIM DO GENOCÍDIO DO POVO NEGRO E
DOS POVOS INDÍGENAS!
ABAIXO O TERRORISMO DE ESTADO E DO
CAPITAL!
PELO DESMANTELAMENTO DE TODO O APARATO
REPRESSIVO!
PELO DIREITO À HISTÓRIA, À MEMÓRIA, À
VERDADE E À JUSTIÇA!
FASCISTAS NÃO PASSARÃO!
Belo Horizonte, 1º de abril de 2024
Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e
Cidadania – BH/MG
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