1) A construção da cultura
repressiva no Brasil: processo histórico de longa duração
A história da República
brasileira tem sido o que Henrique Samet chama com muita propriedade de construção da brasilidade excludente, uma ideologia
baseada no pressuposto de que “Estado e nação precisam de povo, mas não
obrigatoriamente de cidadãos”. A
exclusão estrutural e seus parceiros inseparáveis - a opressão econômica e o
exercício da violência institucional - seriam a própria razão de ser da
nacionalidade brasileira. Uma
nacionalidade sem cidadaniaforjada em nome da
manutenção dos interesses das oligarquias dominantes.
Caio Prado Junior identifica o núcleo duro deste processo no binômio
herança escravocrata / estrutura fundiária baseada na grande
exploração agrícola. Trata-se, segundo ele, “daquele passado que parece longínquo, mas que nos cerca de todo
lado” - “o passado que nos fez”O Brasil contemporâneo é resultado dessa herança do escravismo, que se
manifesta na desigualdade intransponível e na dominação
irrestrita geradas por uma economia presa desde o século
XVI ao capitalismo europeu e assentada sobre o trabalho escravo.
Com a construção do Estado nacional ao longo do século XIX
confirma-se a hegemonia política das elites dirigentes. Consolida-se a
legitimação da brutal desigualdade da sociedade escravista e a preservação das
raízes portuguesas e da monarquia tida como única garantia da ordem, da unidade
e da identidade nacionais. A nação foi construída segundo a imagem e
semelhança das classes senhoriais latifundiárias e escravocratas: só elas
tinham as prerrogativas da liberdade (leia-se propriedade). O resto da sociedade deveria ser mantido
meticulosamente alijado - os mundos deveriam ser conservados rigorosamente
separados.
Tal construção se realiza através de um conjunto de
representações - o que Cecília Coimbra chama de “constituição de subjetividades”e Carlos Fico de “repertório de imagens e ideias que definem o Brasil”. Tal
processo acabaria por configurar “um imaginário muito difícil de ser abalado”Fico destaca a instituição do índio como símbolo da identidade nacional,
resultado da combinação do “amálgama das três raças” - apontado por Von Martiuscomo núcleo da singularidade do país - com o indianismo do nosso romantismo
literário
Este mito fundador da brasilidade, que é também “mito sacrificial” (Alfredo
Bosi), fabrica uma das mais persistentes falácias das matrizes explicativas da
nossa singularidade: aquela que define a boa índole, a cordialidade, a
passividade e a informalidade como características ontológicas da população. Esta questão é tipificada no homem cordial de
Sérgio Buarque de Holanda,
o qual simboliza uma sociedade marcada pela promiscuidade entre público e
privado com franco favoritismo do segundo em detrimento do primeiro. O homem cordial não se
adequa de forma alguma à esfera pública: ele representa, ao contrário, o
protótipo (arquétipo?) do não-cidadão; o seu locus é a
esfera do privado.
Subalternidade e heteronomia são alçadas ao estatuto de virtudes nacionais. A
docilidade brasileira é colocada como representação de outra falácia: a
docilidade da dominação. A violência do
opressor é ao mesmo tempo negada e legitimada como necessidade histórica, condição para a consecução de um bem maior: a moral, a religião, os
bons costumes, a modernidade, a civilização - enfim, a construção da ordem.
Com o advento da República, a noção de excludência continua
na centralidade. Os fundamentos
ideológicos anteriores são amplificados, devidamente adaptados à transição da ordem escravocrata para a ordem burguesa. Os criadores
culturais do Estado e da nação republicanos
realizam o princípio basilar dos colegas que os precederam – a interdição da
incorporação das massas populares à sociedade brasileira. A lógica
segregacionista dos urbanistas e da modernização produz modelos espaciais
sempre baseados na exclusão. Seu objetivo primordial é proteger as elites contra
as multidões. A Cidade – representação
da nação – tem cada vez mais a cara dos donos: ruas e praças são consideradas
“áreas de risco”, “a grande escola do mal” - objeto de regulação e quadriculação permanentes. É nesse contexto de criminalização dos
espaços públicos que se dá a emergência do conceito de classes perigosas.
As classes perigosas são as eternas classes
indesejáveis, compostas por subversivos, marginais e desclassificados de todos os matizes, todos no mesmo balaio. A noção de periculosidade incide sobre os excluídos históricos - o conjunto dos inimigos da ordem. Estes
não podem ser tolerados na versão positivista
da brasilidade excludente: Ordem e
Progresso. Trata-se da construção
do processo de estigmatização das classes populares e dos movimentos sociais enquanto
suspeitos permanentes, fenômeno tão familiar para nós do final da segunda década do chamado
terceiro milênio.
Mais uma vez está
colocada a necessidade histórica da violência – e da quadriculação – em nome da
construção da ordem, que passa a ser materializada na montagem paulatina de aparelho
repressivo policial e político inspirado ao mesmo tempo na violência da
tradição escravocrata e no cientificismo então em voga. Haveria que se garantir
a maior eficiência possível no combate ao perigo maior – as massas
populares. A matriz discursiva desse
conjunto de representações articula “contaminação,
nocividade e subversão” a partir da semântica biologizante adotada pelo
movimento higienista, cujo determinante
racista foi levado aqui às máximas consequências: o alvo principal desta política é a massa de ex-escravos, estorvo e ameaça constantes,
cuja incorporação ainda constitui problema no Brasil.
Vem do higienismo
brasileiro a noção de periferia social, geográfica
e demográfica e o estabelecimento de fronteiras profiláticas separando as zonas civilizadas das zonas selvagens para evitar
o alastramento da degradação moral inerente às classes
perigosas. Vem daí também o “discurso
da invasão”, o qual estabelece que a nocividade da população nativa sem defesa (anticorpos) é
transmitida pelo estrangeiro (corpo estranho), vetor de decadência e subversão. Seu desdobramento é o que Henrique Samet
considera o próprio “cerne da construção da brasilidade
excludente”: espaço para a criação
de conceitos que compreendem a existência do inimigo interno e a necessidade de
sua eliminação.
São implantados a violência bruta como medida de
assepsia social e o tratamento da questão social como caso de polícia. A massa
de ex-escravos, os pobres, os miseráveis, os indigentes,
os marginais - que sempre constituíram
a maioria da população - nunca deixaram de viver sob o jugo da exceção e do
terror. Este se manteve em todas as formas de regime político, constitucionais
ou ditatoriais.
Eliane Dutra aponta a existência de uma “disposição totalitária” no Brasil dos anos 1930 (Getúlio Vargas), a qual deixou marcas e efeitos
renitentes.
Esta disposição totalitária se concretiza na montagem de aparelho repressivo adequado à mais
extrema violência policial e política e de
gigantesca máquina de propaganda - monopolização dos meios de
comunicação , instrumentalização da
instrução pública e regulação vida
cultural pelo Estado. Não por acaso o primeiro partido nacional de massas, que
atuou legalmente no país de 1932 a 1938, vem a ser a Ação Integralista
Brasileira de Plínio Salgado, de doutrina abertamente fascista.
Florestan Fernandes afirma que, desde a década de 1930, “... as
classes e estratos de classe burgueses desenvolveram uma solidariedade de
classes que se tornou abertamente totalitária e contrarrevolucionária, em suma, o fermento de uma ditadura de classe preventiva”, que se efetivaria com o golpe de 1964
2) Caracterização
da ditadura militar brasileira: a cultura do simulacro
A que veio, então, o
golpe de 1964? Trata-se da implementação do projeto de modernização conservadora e acelerada do capitalismo no Brasil, baseado na “compulsão no sentido de aprofundar
a estruturação monopolística da economia”: aceleração das taxas de acumulação,
do processo de concentração da renda e da exploração da mais valia cuja
contrapartida é a “aceleração da desigualdade”. Daí o aumento exponencial da miséria e da
opressão - projeto tornado possível através da mais terrível repressão contra as/os
trabalhadoras/es e o povo. Também para Francisco de Oliveira, o pós-64 é uma contrarrevolução. É aí
que está “sua semelhança mais pronunciada com o fascismo, uma combinação de
expansão econômica e repressão”
Assim, a brasilidade excludente é metamorfoseada em modernização excludente. Como diz Florestan Fernandes, trata-se da implementação do projeto permanente
da burguesia: a consolidação do modelo
autocrático-burguês de transformação capitalista. Uma contrarrevolução autodefensiva e preventiva – autodefesa/autoafirmação/autoprivilegiamento.
A burguesia brasileira é historicamente regressiva, oligárquica, patriarcal,
escravocrata e autocrática.
O programa da contrarrevolução preventiva garantida pela ditadura militar soa
assustadoramente familiar. Sua atualidade é gritante:
- perenização da dominação
burguesa nua e crua, sem mediação;
- consolidação de nova forma de
submissão e alinhamento com o imperialismo, sobretudo o americano;
- aceleração e aprofundamento da
acumulação capitalista;
- maior vinculação com o
capitalismo financeiro internacional;
- militarização do Estado e da
sociedade;
- repressão feroz aos inimigos
internos: as/os trabalhadoras/os, as massas populares e as/os opositoras/os –
armadas/os ou não;
- montagem de gigantesco, tentacular
e ubíquo aparato repressivo com a função precípua de monitorar, reprimir,
prender, torturar, matar e fazer desaparecer os corpos dos inimigos internos;
-
erradicação do perigo vermelho/combate cerrado ao comunismo internacional, defesa
dos pilares da civilização cristã – aí cabem todos os fundamentalismos.
Para garantir esta modernização
conservadora do capitalismo, o
Estado de Segurança Nacional implantado com o golpe de 1964 procede ao arremate
do processo de longa duração de consolidação no Brasil da nacionalidade sem cidadania. Seu paradigma é o terrorismo de Estado: urgia destruir todas as
conquistas da lutas das/os trabalhadoras/es desde os anos 1900. O arcabouço
ideológico do Estado de Segurança Nacional (ESN) é a Doutrina de Segurança
Nacional (DSN). Esta se baseia no desmonte metódico do espaço público e veio
para atualizar a disposição totalitária que já apontamos. A DSN não se limita à Lei de
Segurança Nacional, que é apenas um de seus instrumentos jurídicos, como os
atos institucionais, os decretos-leis, os decretos secretos. Trata-se de projeto
geral para a sociedade. Compreende todos os aspectos da vida coletiva e todas
as decisões políticas do país. Seus
princípios, sintetizados por Golbery do Couto e Silva, principal ideólogo da
ditadura militar, são os seguintes: o Ocidente como ideal; a ciência como
instrumento de ação; o cristianismo como paradigma ético. A partir do combate ao
comunismo internacional, adota-se o conceito de “guerra de subversão interna” e
a noção de “fronteiras ideológicas” em oposição a “fronteiras territoriais”. É,
assim, estatuída a categoria de “inimigos internos” cuja contenção e eliminação
se tornam a razão de ser do Estado de Segurança Nacional.
A Doutrina de Segurança Nacional sofreu influência direta das Forças
Armadas dos Estados Unidos no contexto da guerra fria. Sua elaboração e difusão
são de responsabilidade da Escola Superior de Guerra (ESG), fundada em 1949.
Esta, a partir de 1964, passa a ser o grande celeiro de quadros para a
ditadura. Em 1951 foi criada a
Associação de Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), órgão de
vinculação permanente dos ex-estagiários da ESG, os quais funcionam como
multiplicadores. Uma de suas características fundamentais é a organicidade
entre empresários e militares (vide IPES e IBAD). São produtos da ESG o Serviço
Nacional de Informações (SNI), um curso de informações (1965-1972) e boa parte
da legislação da ditadura
A definição da nação como sujeito da história é um dos principais
traços totalitários res-significados pela Doutrina de Segurança Nacional. A nação, universal
abstrato representado pela
“Revolução vitoriosa”, é sujeito exclusivo e sujeito absoluto. Esta representação opera um sistema de inversões
político-ideológicas, como analisa Marilena Chauí, que se manifesta na ênfase
dada à noção de legalidade e legitimidade, levando à sua profunda subversão e à
institucionalização da tortura, a qual se torna a mais genuína representação do
Estado de Segurança Nacional. O terror é a pedra de toque da Doutrina de Segurança
Nacional, que consolida de vez o conceito de inimigos
internos – todas e todos que fazem
algum tipo de oposição ao regime - e a necessidade de
sua eliminação. Toda a população é colocada sob
suspeição.
Para eliminar os inimigos internos é montado um aparelho repressivo estruturado
em três grandes sistemas o SISNI
(Sistema Nacional de Informações), o SISSEGIN
(Sistema de Segurança Interna) e a CGI (Comissão
Geral de Investigações). O SISNI, instituído em 1970, é integrado
pelo Serviço Nacional de Informações (SNI, criado em maio de 1964), pelos
Sistemas Setoriais de Informações dos Ministérios Civis, Sistemas Setoriais de
Informações dos Ministérios Militares, Subsistema de Informações Estratégicas
Militares (SUSIEM) e por outros órgãos setoriais. O papel do SNI, seu órgão central, é a
produção e coordenação das atividades de informações em todo o território
nacional e no exterior, sobretudo nos países do Cone Sul da América Latina, o
que configura a montagem de uma internacional da repressão, com destaque para a
Operação Condor e para a forte
presença oficial dos EUA. O SNI é
protegido por legislação especial contra todo e qualquer controle externo. Seu chefe tem status de ministro e faz assessoria direta ao presidente (?) da
república. O SISSEGIN é o sistema
repressor por excelência, instituído por diretrizes sigilosas (decretos
secretos) do Conselho de Segurança Nacional aprovadas pelo presidente (?) da República.
Articula organicamente a Polícia Federal, os DOPS estaduais, os centros de
informação de cada uma das três armas – Cie (Exército), Cenimar (Marinha) e
Cisa (Aeronáutica) – e o Estado Maior das Forças Armadas (EMFA). É estabelecida também relação sistemática com
grupos paramilitares e parapoliciais clandestinos e semiclandestinos,
especialmente o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), o Movimento Anticomunista
(MAC) e o Esquadrão da Morte. A criação
da Operação Bandeirante (OBAN) em 1969, em São Paulo, pelo governo Abreu Sodré
associado a grandes grupos empresariais, serviu de referência para a
implantação dos Destacamentos de Operações e Informações e Centros de Operações
e Defesa Interna (DOI-CODIs), em janeiro de 1970. Estes comandos são centralizados no Exército
e englobam as outras duas armas. Além
disso, o Decreto-lei 667 de 2 de julho de1969 regulamenta as polícias militares de todo o país, submetendo-as
diretamente ao Estado Maior do Exército através da Inspetoria Geral da Polícia
Militar, transformando-as, assim, em
apêndices dos CODIs. A policia civil já havia feito o giro para a repressão política. Está dada, assim, a configuração definitiva
do aparelho repressivo da ditadura militar, cuja estrutura básica até hoje
continua montada. O Sistema CGI foi
concebido como tentativa de realização do discurso pretensamente legitimador
dos golpistas, que vinculava subversão, comunismo e corrupção. Foi criado em dezembro de 1968, logo depois
do AI-5, no âmbito do Ministério da Justiça; foi extinto no final do governo
Geisel (1978).
Esta “estrutura policial-burocrático-totalitária”
formalizou a convivência dos trâmites jurídicos e burocráticos com os porões da
ditadura: “à confissão na cadeira do dragão sucedia ou o inquérito policial ou o ritual
processual da justiça militar que formaliza as acusações obtidas ilegalmente” .
Chegamos, assim, aos elementos essenciais da ditadura militar, compreendidos no
binômio violência e terror acondicionado no invólucro do simulacro de
legalidade (Irene Cardoso). É esta
a tradução do slogan oficial ‘Desenvolvimento e
Segurança’, título da revista da
ADESG e lema do governo Médici (1969-1974).
O Estado de Segurança Nacional institucionaliza a tortura adotando-a como método
de governo/política de Estado e tornando-a a instituição central da ditadura
militar.
O Projeto ”Brasil: Nunca Mais” (BNM) reproduz a totalidade dos processos
contra presos políticos na instância do Superior Tribunal Militar (1964-1978) com
os depoimentos das 1 843 pessoas (2 847 páginas) que fizeram em juízo a
denúncia das violências que sofreram. Em três volumes (Tomo V, v. 1, 2 e 3 As torturas) são
descritas as torturas sofridas por estas pessoas e listados cerca de 260 tipos
de tortura e 246 centros de tortura ativos durante a ditadura. O BNM chega à seguinte conclusão:
... a leitura dos relatos das vítimas serve como refutação
dos argumentos geralmente usados no sentido de fazer crer que as violências nos
organismos de repressão policial-política eram excessos de uns poucos. Na
verdade os relatos trazem consigo a convicção inabalável que a aplicação da
tortura havia sido deliberadamente determinada e adotada, fazendo parte essencial
do aparelho de repressão montado pelo Regime Militar. Decorre dos
testemunhos a certeza de que o uso da tortura contra opositores políticos é
parte integrante dos regimes calcados na Doutrina de Segurança Nacional.
Quanto a isto, o manual confidencial de interrogatório do Centro de Informações do
Exército (Cie), produzido em 1971 sob a responsabilidade do gabinete central
Ministério do Exército, não deixa margem para dúvidas. Nele pode-se ler o seguinte:
Uma agência de contrainformação não é um Tribunal da
Justiça. Ela existe para obter
informações sobre as possibilidades, métodos e intenções de grupos hostis ou
subversivos, a fim de proteger o Estado contra seus ataques. Disso se conclui que o objetivo de um interrogatório de subversivos não é
fornecer dados para a Justiça Criminal processá-los; seu objetivo é obter o máximo possível de
informações. Para conseguir isso será necessário, frequentemente, recorrer a
métodos de interrogatório que, legalmente, constituem violência. É assaz importante que isto seja muito bem
entendido por todos aqueles que lidam com o problema, para que o interrogador
não venha a ser inquietado para observar as regras estritas do direito.
Os atos institucionais constituem a representação mais
evidente da radical distorção da noção de legalidade imposta pela ditadura. São
eles figuras jurídicas anômalas de competência exclusiva do presidente (?) da
república, que passam a representar a nova constitucionalidade do Estado. São em número de dezessete, tendo sido editados
de abril /1964 a outubro/1969. O AI – 1(9
de abril de 1964) e o AI-2 (27 de outubro
de 1965), depois incorporados à Constituição de 1967, instituem o Estado de Segurança Nacional e
institucionalizam a figura do inimigo interno da Doutrina
de Segurança Nacional. O
AI – 5 (13 de dezembro de 1968) é o mais discricionário deles outorgando ao presidente (?) da
república poder absoluto sobre a Federação e sobre os outros dois poderes,
extinguindo sumariamente direitos civis e políticos, inclusive o habeas corpus para crimes
políticos. Institui o terrorismo de
Estado, garante a impunidade deste e de seus agentes, sendo o único a não ter
prazo para acabar. Foi extinto em
dezembro/1978, mas boa parte de seus dispositivos foram incorporados, sob a
forma de salvaguardas políticas, à constituição e à nova Lei de Segurança
Nacional (Lei 6 620, de 17 de dezembro de 1978). Segundo Irene Cardoso, esta
preocupação com a legalidade e a legitimidade “incorpora um traço dos regimes totalitários: (...)
uma aparência de normalidade deve ser mantida para que a sua eficácia se
realize. Tudo deve aparecer como verossímil, mesmo que a verossimilhança seja
construída a partir de um simulacro”.
Trata-se de uma ditadura que não se assume enquanto tal. Isto
fica evidente, como aponta Carlos fico, no caráter apócrifo de sua propaganda, constituída
por peças não assinadas, atribuídas ao conjunto da sociedade. Os inimigos e o
público-alvo não são nomeados. O esquema é ancorado na combinação da mística do
Brasil grande com a mística do amor, da
esperança, do otimismo, da ausência de conflitos e da conciliação - isto tudo
numa conjuntura de repressão sangrenta e rigorosa censura. Segundo Fico, essa
propaganda se apropria de vasto material histórico de longa duração constituído
sobretudo pelas matrizes ideológicas do Estado Novo: exuberância natural,
democracia racial, congraçamento social, integração nacional, passado incruento,
alegria e festividade do povo
brasileiro. A Assessoria Especial de Relações
Públicas (AERP), criada pelo Decreto 62 119, de 15 de janeiro de 1968, coordena
esta operação de construção de uma “teoria de
Brasil” baseada na autolegitimação e no
auto-reconhecimento
A busca compulsiva de
legitimação a partir de pretensa legalidade e de êxitos no campo econômico
produz efeitos deletérios: se a ditadura não consegue se nomear, tampouco a mídia e a chamada intelligentsia vão dar
conta de fazê-lo. Daí o caos terminológico
promovido pela hegemônica teoria do autoritarismo, de que falava Florestan Fernandes: nele têm
vida longa termos como regime
autoritário, regime militar, movimento militar, movimento cívico-militar,
regime burocrático-militar, regime burocrático-autoritário. A palavra ditadura é cuidadosamente evitada, ou só empregada, mesmo
hoje, com alguma parcimônia.
Repressão
generalizada, tortura institucionalizada, prisões clandestinas, assassinatos e desaparecimentos políticos, censura em todos os níveis, aniquilamento dos canais de expressão e
manifestação, militarização da guerra contra a subversão - uma parte do mundo comum simplesmente
vai se perder neste quadro. Implementa-se a demolição dos espaços e instâncias
tradicionais de militância política e
sociabilização: liquidação dos sindicatos e dos movimentos de
trabalhadoras/es rurais e urbanas/es;
dissolução dos partidos políticos
e das agremiações culturais;
proscrição das entidades estudantis;
descaracterização do legislativo, militarização do judiciário – e desqualificação
de ambos - paralelas à hipertrofia do
executivo; controle draconiano de
fábricas, escolas e universidades;
interdição das manifestações de rua; tentativa de aniquilação das oposições de esquerda, armadas ou não. O consequente
enclausuramento dos indivíduos na esfera privada alimenta uma cultura da desconfiança e do medo.
Esta política de desertificação
social começa a mostrar sinais de esgotamento - mas
ainda com boa reserva de fôlego - a partir de meados da década de 1970, sob a
égide dos dois últimos generais- ditadores, Ernesto Geisel (1974-1979) e João Batista Figueiredo (1979-1985). A insatisfação da sociedade, demonstrada de
forma inequívoca pela vitória plebiscitária da oposição consentida nas eleições
de 1974, pode ser atribuída às seguintes motivações:
- deslegitimação da repressão aos olhos das classes médias - cujos
filhos perdem a imunidade e se tornam alvos do aparelho repressivo sobretudo a
partir de 1968 - reforçada pela configuração de situação de ausência de inimigos
plausíveis com a dizimação da guerrilha
e da oposição não-institucional, armada
ou não;
- multiplicação no país e no exterior de denúncias
dos crimes da ditadura militar (a situação dos presos políticos, exilados e
banidos; a questão da tortura, dos assassinatos e desaparecimentos) e consequente
aumento da pressão nacional e internacional no sentido da apuração e punição
dos responsáveis;
- publicização de escândalos no primeiro
escalão, envolvendo diretamente o próprio
ditador Geisel (caso Lutfalla);
- desmistificação do chamado milagre
brasileiro com a agudização de sua essência
real: inflação galopante, recessão, opressão econômica, arrocho salarial,
crescimento exponencial da dívida externa, aumento brutal dos níveis de miserabilidade.
A
conjuntura que se abre, então, é marcada pelo despertar
dos setores médios- como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a
Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC) – além da insurgência da ala progressista da
hierarquia da Igreja Católica, que tem representação significativa na
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Nesta fase ainda não há
mobilizações de massa, à exceção do movimento estudantil que reinicia as greves
a partir de 1975 e começa a romper os limites dos campi
universitários. Neste ano é desencadeada
também a campanha pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita com o lançamento do Manifesto da Mulher Brasileira pelo Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), organizado primeiro em São
Paulo sob o comando de D. Terezinha Zerbini. Foram constituídos núcleos em
Minas Gerais (presidido por D. Helena Greco), Bahia, Pernambuco, Rio de
Janeiro, Sergipe, Ceará, Paraíba, Santa Catarina
e Rio Grande do Sul. Cabe, às mulheres, portanto, o pioneirismo na luta pela
anistia; mais uma vez são elas que jogam o papel de vanguarda na história. O MFPA acumula forças e abre espaço
para a constituição dos Comitês Brasileiros pela Anistia (CBAs). Num primeiro momento, são as mães, irmãs,
companheiras e filhas dos atingidos que se aglutinam em torno de um objetivo
comum – a busca dos familiares desaparecidos ou a defesa dos familiares presos. Em seguida a luta pela Anistia vai se
ampliar, politizar e envolver os mais diversos setores da sociedade em combate
aberto à ditadura atingindo-a no seu âmago: a Doutrina de Segurança Nacional. É
importantíssimo o protagonismo das/os presas/as políticas/os e das/os
exiladas/os e banidas/os que levaram a luta para os países que as/os acolheram.
Uma nova
conjuntura se abre em 1977-1978, agora com a retomada das manifestações de
massa. É o tempo das grandes greves dos
metalúrgicos do ABCD paulista, que contagiam outras categorias (professores,
construção civil, médicos, funcionários públicos, bancários, petroleiros,
carreteiros). A mobilização estudantil
se faz definitivamente extramuros, em torno da recriação da União Nacional dos
Estudantes (UNE) e das Uniões Estaduais dos Estudantes (UEEs) – as entidades de
base (Centros de Estudo, Diretórios Acadêmicos e Diretórios Centrais de
Estudantes) foram reconstruídas ainda durante os chamados anos de chumbo, na
primeira metade da década de 1970. Rearticula-se o movimento
popular em torno da luta contra a carestia.
As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as comissões pastorais populares
potencializam o peso político da Igreja Católica. É neste contexto que a luta
pela Anistia ganha as ruas, a partir das mobilizações impulsionadas pela
criação dos Comitês Brasileiros de Anistia (1978) Brasil adentro e afora.
A repressão é levada a mudar de tática para assegurar a
perpetuaç voltando a utilizar as instalações oficiais do aparelho de Estado e
incrementando a sua articulação com grupos parapoliciais e paramilitares. No
período imediatamente anterior, quando foi criada a figura dos desaparecidos políticos, eram usadas
prioritariamente instalações clandestinas, “devidamente equipadas e adaptadas
para toda sorte de torturas”onde os presos políticos eram mantidos e interrogados depois de terem sido sequestrados. Existiam dezenas em funcionamento no Brasil,
sobretudo entre 1969 e 1975. Com a extinção definitiva da esquerda
armada, os órgãos repressivos se voltam mais uma vez para o reformista Partido
Comunista Brasileiro (PCB); para o que sobrou do Partido Comunista do Brasil
(PCdoB) depois do massacre contra a guerrilha do Araguaia (1972-1974), onde
foram assassinados 69 guerrilheiros; e daí para organizações menores (1977)
como o Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP). O giro é dado, sobretudo, em direção às lutas
das/os trabalhadoras/es e dos movimentos sociais. Entidades legais, órgãos da chamada imprensa alternativa e até as bancas de revistas que os vendiam tornam-se objeto
prioritário do aparelho repressivo e das organizações terroristas intimamente
vinculadas a ele, como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), o Movimento Anti
Comunista (MAC), o Grupo Anti Comunista (GAC), o Comando Delta, a Falange
Pátria Nova, a Aliança Anticomunista Brasileira
et catervaDe 1977
a 1981, ocorrem cerca de 100 atentados
em todo o país, contemplados com a mais completa impunidade: não houve apuração
das responsabilidades ou qualquer tipo de punição, poucos foram os inquéritos abertos e nenhum
deles prosperou. Belo Horizonte foi
palco de trinta e seis atentados, mais de 1/3 do número total estimado - o
movimento pela anistia foi alvo de meia dúzia delese de intimidações diversas (bilhetes, cartas, divulgação de documentos
apócrifos, telefonemas obscenos, ameaças, violações de correspondência,
provocações de todos os gêneros). Os episódios da OAB-RJ (27/agosto/1980) e do
Riocentro (30/abril/1981) têm maior repercussão porque, no primeiro caso, a
secretária que recebeu a carta-bomba, D. Lida Monteiro da Silva, morreu em
consequência da explosão. No caso Riocentro revela-se o comprometimento do
Exército e do aparelho de Estado com este tipo de prática. O flagrante foi
toscamente descaracterizado. A bomba explodiu literalmente no colo dos
terroristas que a levavam, dois militares do DOI-CODI/RJ, matando um e
mutilando o outro. O inquérito foi
aberto, mas sumariamente esvaziado e concluído.
Assim, o
terrorismo de Estado continua ativo: além de Vladimir Herzog (25/outubro/1975),
Manoel Fiel Filho (17/janeiro/1976) e dos três dirigentes do PCdoB executados
na Chacina da Lapa (16/ dezembro/1976), doze militantes foram mortos
pela repressão entre 1975 e 1980 e houve nove desaparecimentos
políticos ( incluindo dois
argentinos). Entre os mortos, estão três metalúrgicos (Benedito Gonçalves,
Guido Leão e Santo Dias da Silva), um operário da construção civil (Orocílio
Martins Gonçalves) por participarem de mobilizações grevistas e quatro líderes
sindicais rurais em áreas de conflito de terra (Raimundo Ferreira Lima e Wilson
de Souza Pinheiro e Margarida Maria Alves, esta morta em 1983). Destaca-se
ainda o caso pouco conhecido de Pedro Jerônimo de Souza, também militante do
Partido Comunista Brasileiro, morto no DOI-CODI de Fortaleza um mês antes de
Herzog (17/setembro /1975), em circunstâncias similares: suicídio por enforcamento com a
própria toalha de rosto. E mais: no final de 1978, os uruguaios Lilian
Celiberti e Universindo Dias foram sequestrados em Porto Alegre por policiais
brasileiros em operação conjunta com a repressão uruguaia. A denúncia deste caso constitui uma das
principais campanhas dos CBAs.
O governo Geisel vai enfrentar as duas
conjunturas apontadas – o despertar das classes
médias (1974-77) e a retomada do movimento operário e
popular (1977-78) - com a combinação de quatro tipos de procedimento:
- ofensiva no sentido de regulação do aparelho
repressivo, na tentativa de garantir sua previsibilidade e refrear a tendência
à autonomização – as medidas concretas se limitam à divisão da sua competência
com o poder judiciário e a Procuradoria Geral da República; o objetivo não é a desativação, mas o controle. O aparelho
repressivo, sobretudo a comunidade de informações, é incrementado neste período
- contenção de toda e qualquer veleidade de
radicalização da oposição institucional, o que é demonstrado pela onda de cassações
em 1977-78, verdadeira operação de saneamento do legislativo com expurgo da chamada
oposição autêntica;
- todo rigor em relação à oposição não
institucional – o movimento estudantil e o movimento das/os trabalhadoras/es
são os mais atingidos: a tentativa de realização do III Encontro Nacional de
Estudantes em Belo Horizonte (junho/1977) e a sua realização clandestina na
PUC/SP em 1978 são ferozmente reprimidas;
o dec.-lei 1632, de 1978, se superpõe à Lei de Segurança Nacional
proibindo as greves nos setores essenciais, incluindo aí os bancários;
- ofensiva
de cooptação de setores da sociedade civil, aqueles considerados domesticáveis e
formadores de opinião como OAB, ABI, CNBB, SBPC.
A ditadura
procura se normalizar com o projeto de consolidação do regime cujo núcleo é o
assim chamado generoso consenso proposto pelo general Geisel. Ele preconiza “a abertura lenta, gradual e segura; a construção de “um consenso
básico e de salvaguardas eficazes para a institucionalização acabada dos
princípios da Revolução de 64 e a implantação definitiva de nossa doutrina
revolucionária”.
Trata-se,
portanto, de esquema de negociação interna – entre os blocos que participam do
poder - cuja contrapartida é o reforço da criminalização daqueles que estão de
fora, da interdição do dissenso, da exclusão
das oposições não consentidas ou não domesticáveis.
A centralidade deste projeto é a garantia de governabilidade, entendida naquele momento como necessidade de substituir a violência
explícita pela coerção legalizada sem abrir mão do “potencial de ação
repressiva” acumulado, o que se daria através de medidas a serem incorporadas à
constituição. O controle total das
manifestações políticas com o seu emparedamento nos estreitos limites do
parlamento e das agremiações partidárias e o “minucioso estabelecimento de
garantias para o exercício cotidiano do poder”constituem as principais preocupações. Avança o processo de normalização defeituosa (Irene Cardoso), marcado por um projeto de abertura política gerado em
contexto de encolhimento severo do espaço público e concebido para impedir a reconstituição
e reocupação do mesmo
O ditador Geisel menciona também certa “imaginação política
criadora” a qual certamente está na base do Pacote de
Abril de 1977. Este impõe o fechamento do Congresso nacional
por 15 dias (1 a 15/4) para a outorga de um conjunto de emendas constitucionais
e decretos-leis como a Emenda Constitucional
7, que determina a reforma do Judiciário; e a Emenda Constitucional 8
(14/4/1977), que introduz a eleição indireta para governadores ( antes esta era
estabelecida por legislação ordinária, agora é incorporada à constituição), amplia
para seis anos o mandato presidencial, muda o número de deputados federais para
dificultar o desempenho da oposição, cria a figura do senador biônico, eleito indiretamente para consolidar a maioria
no parlamento e no colégio eleitoral e evitar vetos a iniciativas do executivo.
O efeito principal destas iniciativas é a garantia de fluidez na tramitação dos
decretos-leis e das emendas constitucionais, o que permitiria ao governo
prescindir da edição de novos atos institucionais.
No mês de novembro/1978 abre-se a temporada de implementação
das tais salvaguardas eficazes, que tem seus melhores momentos na incorporação
à constituição do estado de sítio e das medidas de emergência e na nova Lei de
Segurança Nacional (Lei 6620, aprovada por decurso de prazo a 27 de novembro e
promulgada a 17 de dezembro de 1978). Segundo Sandra Starling, trata-se de tentativa
de jurisdicização deste
dispositivo, que emerge dos porões da ditadura para se alçar às altas cortes.
A Nova Lei de Segurança Nacional implementa
na prática a institucionalização do AI-5
caracterizada nas seguintes determinações:
atribuição de poderes quase ilimitados ao ministro da Justiça, cabendo a ele a
censura, proibição e apreensão de todo e qualquer material considerado nocivo à
segurança nacional – está institucionalizada a censura prévia (art. 50);
abrandamento das penas máximas paralelo ao agravamento das penas mínimas para
garantir maior eficácia das punições; tipificação de elenco maior de crimes
como aqueles “contra a organização do trabalho” e os “delitos de imprensa”
(art. 14) e da responsabilização criminal de jovens de 16
anos (art.4); institucionalização da
incomunicabilidade e das prisões clandestinas na figura da “comunicação
reservada ao juiz” (art. 53);
criminalização de qualquer tipo de vinculação com entidades estrangeiras
que “exerçam atividades prejudiciais à segurança nacional “(art,12); proibição
de “divulgar por qualquer meio de comunicação social notícia falsa, tendenciosa
ou fato verdadeiro truncado ou deturpado, de modo a indispor ou tentar indispor
o povo com as autoridades constituídas” (art. 14).
Endereço certo destes dois últimos artigos: a imprensa –
sobretudo a imprensa alternativa - e os movimentos que denunciam as graves
violações dos direitos humanos – um dos mais representativos deles era o
movimento pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita. A nova Lei de Segurança
Nacional levanta clamores de indignação em todos os setores de oposição - instituídos ou instituintes, liberais ou
de esquerda. Ela vai, apesar disso, cumprir à risca o destino de sustentar
institucionalmente o propalado gradual mas seguro
aperfeiçoamento democrático em
andamento. É arrematado, assim, o esquema que proporciona ao general Geisel
dispositivos legais, burocráticos e militares de tal ordem, que ele passa a se
qualificar como aquele que acumulou a maior concentração de poderes entre todos
os ditadores do regim militar
O AI - 5 vai ser abolido logo depois, no final de dezembro de 1978. Afinal de contas, com as salvaguardas eficazes agora incorporadas à constitucionalidade do Estado, já não é necessário um dispositivo excepcional,
portanto forçosamente transitório: estão dadas a constitucionalização
da exceção e a internalização da
repressão e da truculência na cultura política nacional Grande campeão da centralização política,
Geisel prepara cuidadosamente e garante o controle de sua própria
sucessão: em março de 1979, o general
João Batista Figueiredo, ministro-chefe do SNI,
assume a presidência da República para mandato de seis anos, imbuído da missão de levar em frente o
projeto político urdido sob a chancela da normalização
defeituosa.
Continuarão intocados o modelo econômico – a modernização excludente cuja consolidação é tributária exatamente do AI-5 - e, sobretudo, a
essência mesma do regime - a Doutrina de
Segurança Nacional e seus corolários imediatos, a estrutura do aparelho
repressivo e a tortura institucionalizada. O principal ideólogo da Doutrina de
Segurança Nacional, Golbery do Couto e Silva, é também o principal articulador
do projeto de distensão política e, a seguir, do projeto de anistia parcial do
governo. Tudo isto foi engendrado, portanto, nas entranhas mesmo do regime,
como diz Eliezer Rizzo Oliveira
E é o próprio Geisel quem defende, sem meias palavras, em entrevista concedida
a Maria Celina D’Araújo e Celso Castro: “Acho que a tortura, em certos casos,
torna-se necessária para obter confissões... Não justifico a tortura, mas
reconheço que há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a
tortura para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior”.
Estas questões levam à desmistificação da
indefectível tipologia convencional, aquela que estabelece oposição mecânica entre
dois blocos conflitantes - militares duros X militares moderados. Trata-se, ao contrário, de permanente processo
de acomodação entre setores que, com certeza, têm suas nuances, mas não
divergem em questões de fundo: não há questionamento de coisa alguma que se refere
ao arcabouço ideológico traduzido, como vimos, no binômio desenvolvimento e segurança, ou aos elementos que constituem o terror, muito menos em relação ao
modelo econômico do regime.
É em tom de perplexidade que Maria Celina D’Araújo
corrobora esta avaliação ao analisar a documentação do acervo pessoal de Geisel
doado, em 1998, ao Cpdoc da Fundação Getúlio Vargas:
Tendo em vista este histórico de politização,
era de se esperar que, durante o governo Geisel, a pasta da Justiça se
convertesse em espaço especialmente relevante para o processo de abertura,
sendo tal governo o que mais se destacou pelo esforço de ‘transição’ do regime
autoritário para um de ‘normalidade institucional’ para usar o arcabouço
conceitual do próprio Geisel em suas memórias.
No entanto quando se examinam os documentos relativos ao Ministério da
Justiça que integram o arquivo do ex-presidente, a impressão que fica é bem
diferente. Segundo estes registros, as
medidas de endurecimento do regime teriam prevalecido sobre aquelas que
preconizavam a democratização. (...) Conhecido pela liderança do processo de
abertura política, a imagem do governo Geisel que sai desses papéis é a que
enfatiza o controle político, a repressão à esquerda e à oposição, e a censura
à imprensa. O ministério ali retratado
situa-se mais como espaço de ação da ‘linha dura’ do que como a esfera que
comandou a mudança. Dito de outra forma,
espelha mais o lado duro da ação do governo, pois efetivamente o governo Geisel
usou os poderes excepcionais da ditadura, fechou o Congresso, cassou mandatos e
comandou operações violentas contra os comunistas.
É nesta conjuntura que os movimentos sociais
retomam a ofensiva política atropelando o projeto de normalização da ditadura,
sabotando e subvertendo a lógica do generoso
consenso e escancarando os limites impostos. O espaço
urbano é reocupado e a Cidade é resgatada enquanto locus de exercício
da cidadania. Greves operárias,
rearticulação do movimento popular, ascenso do
movimento estudantil: tudo isto reforça e aumenta a visibilidade da luta
pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita. É exatamente na negação resoluta do
projeto de institucionalização da ditadura militar que os Comitês Brasileiros
pela Anistia vão operar.
3) Reatualização da discussão: as
marcas deixadas pelos 21 longos anos de ditadura
A
longa transição política sem desfecho – iniciada quando o último general deixou
o poder (1985) – incorporou a cultura repressiva de longa duração levada ao
paroxismo pela ditadura militar. Donde incorporou a Doutrina de Segurança
Nacional. Não se trata de entulho, mas de elemento essencial constitutivo do Estado democrático de direito instituído pela Constituição de
1988. Muitos chamaram e chamam esta
longa transição de redemocratização. Nós preferimos chamá-la de normalização da exceção brasileira (como Paulo Arantes e Tales Ab’Sáber); ou de
normalização defeituosa (como Irene Cardoso).
As ditaduras são intrinsecamente
transitórias, têm prazo de validade por mais longas e sangrentas que sejam como
foi o caso do Brasil. O Estado de
direito é a melhor cobertura para a
consolidação e o aprofundamento da exploração, da opressão e da espoliação
capitalistas. Como denuncia Paulo Arantes, este Estado de direito configura-se em Estado oligárquico de direito com destaque para as afinidades históricas
entre capitalismo e exceção, entre Estado e crime organizado/corrupção. Ele garante a legitimação, a
resiliência, a sustentabilidade e a governabilidade da dominação burguesa – a
possibilidade de sua perenização. Consolida-se
o modelo autocrático-burguês
de transformação capitalista de que falava Florestan Fernandes, projeto que saiu vitorioso da ditadura
militar. O Estado democrático de
direito dá
plena sustentação técnica e política ao totalitarismo de mercado. É este o
papel do judiciário. Daí o reacionarismo intransponível do judiciário como um
todo e da magistratura em particular. O judiciário respaldou o impeachment, ungiu o
governo Temer e consagrou a inimputabilidade dos torturadores e assassinos de
presos políticos (indeferimento da ADPF
153 pelo Supremo Tribunal Federal, em 29 de abril de 2010). São proverbiais a
sua subserviência perante o poder e o seu papel ex oficio de
mantenedor das relações de dominação e opressão. É esta a lógica do judiciário no Brasil: histeria
punitiva para pobres e negras/os; criminalização dos movimentos sociais, da diversidade
e das lutas das/os trabalhadoras/os; total impunidade para os perpetradores de
graves violações de direitos humanos e de crimes contra a humanidade – o
Estado, seus asseclas e seus agentes.
Estamos em 2018 - ano do cinquentenário do AI-5, dos 33 anos de transição
controlada e dos 39 anos da lei de anistia parcial. Permanece sem
equacionamento todo o contencioso da ditadura militar. Permanece a reciclagem
nefasta da Doutrina de Segurança Nacional. A destruição continuada do espaço
público continua a ser praticada. A tortura e o extermínio se mantêm como
sólidas instituições. O aparato repressivo continua operante. Os arquivos da
repressão continuam fechados. Prospera a estratégia do esquecimento e de
controle da memória pelo Estado. A questão dos mortos e desaparecidos está longe de ser solucionada. O Estado democrático de direito produz aos borbotões novos mortos e desaparecidos – no atacado e no varejo. São
incrementados os instrumentos de violência acumulados durante a ditadura
militar. Os inimigos a serem abatidos são
os mesmos indesejáveis, as mesmas classes perigosas e torturáveis de
sempre.
O Estado Democrático de Direito é racista, genocida, misógino e tem horror à diversidade. Leva
ao paroxismo a sua condição de Estado Penal: tem um dos maiores índices de desigualdade social e concentração de renda do
mundo, faz guerra generalizada
contra os pobres; pratica genocídio institucionalizado contra o Povo Negro e os
Povos Indígenas; exerce política de encarceramento em massa (3ª população
carcerária do planeta; 5ª população carcerária feminina); potencializa
cada vez mais seu arsenal repressivo policial- militar-jurídico- legislativo; tem a polícia que mais mata entre todas as
polícias do planeta. Seu paradigma é a doutrina da pacificação
total
(Eduardo Tomazine).
As UPPs, a naturalização das ocupações dos morros e favelas pelas polícias e
forças armadas, a escabrosa intervenção militar no Rio de Janeiro constituem
dispositivos totalitários. O infame projeto do SUSP/ Sistema Único de Segurança
Pública e o desmonte das conquistas das/os trabalhadoras/os da cidade e do
campo, dos movimentos feministas, das comunidades LGBTs, da luta antimanicomial evidenciam verdadeira situação de
barbárie: política de extermínio/terrorismo de Estado, política de higienização
e eugenia, política de apartheid social e segregação, aprofundamento do
processo de fascistização e militarização do Estado. O obscurantismo político e
cultural é reforçadp por projetos escabrosos
como a Escola sem Partidos/Lei da Mordaça e a draconiana reforma do ensino médio – leia-se
precarização/ terceirização/privatização/mercantilização devastadoras da
educação - imposta por medida provisória. Tudo isto tem levado a níveis insuportáveis
o rebaixamento das relações de convivência e o aviltamento do senso comum.
Ainda
bem que na história nada vem para ficar. Neste ano há o sinistro cinquentenário
do AI-5. Mas nós comemoramos o aniversário de 50 anos de maio de 1968, da
Passeata dos 100 mil, das greves de Contagem e Osasco. Comemoramos o
aniversário de 170 anos da primavera dos povos - as revoluções de 1848 - e os
cinco anos das nossas belas jornadas de junho de 2013. Saudamos estas lutas e
aqueles que nelas tombaram: Edson Luiz de Lima Souto (Rio de Janeiro, 28 março
1968), Douglas Henrique de Oliveira Souza, Luiz Felipe Aniceto de Almeida, Luis
Estrela e Lucas Daniel Alcântara Lima (Belo Horizonte e grande BH, jornadas de
junho 2013). Saudamos Amarildo Souza (Rio de Janeiro,13 julho 2013/ Operação
Paz Armada da UPP da Rocinha) e os 15 moradores executados pela PM no Bairro
Nova Holanda no Complexo da Maré (Rio de Janeiro,24 de junho 2013). Nossas
homenagens aos camponeses massacrados pelo latifúndio na chacina de Pau D’Arco
(24 de maio 2018). Um viva para Marielle Franco e Anderson Silva (14 de março
2018) e para Marcos Vinicius da Silva, o colegial de 14 anos executado por
operação conjunta Polícia Civil/ Exército, também da Maré (20 de junho 2018).
Liberdade para Rafael Braga! A lista
seria interminável: a polícia que mais mata no mundo, repetimos, prende e mata
pobre todo dia.
Procuramos ao longo desta exposição
reforçar a desconstrução de certas falácias em torno da ideia de que os anos
1960/1970 pertencem a um passado remoto, que o golpe militar é coisa do
passado: afinal já se passaram 54 anos. Esta noção não se sustenta nem do ponto
de vista cronológico, nem do ponto de vista político: estamos falando do tempo
histórico, que é feito de continuidades/permanências e rupturas/transformações.
Temos visto que as continuidades têm sobrepujado as rupturas nesta matéria.
É por estas e por outras que
nunca é demais repetir que devemos fazer
o exercício permanente de reflexão, da perplexidade e da indignação para que
possamos desnaturalizar e transformar esta realidade. Devemos nos manter
no campo da radicalidade e da resistência na luta pelos direitos humanos, que
entendemos como combate ao terrorismo de Estado e do capital. Atendamos, portanto ao chamado
de Franz Fanon que nos convoca à insurgência, ao dissenso, à ruptura, à negação
intransigente da situação de barbárie que nos oprime.
Belo Horizonte, junho/agosto de 2018
Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania