"Estamos aqui pela Humanidade!" Comuna de Paris, 1871 - "Sejamos realistas, exijamos o impossível." Maio de 68

R. Hermilo Alves, 290, Santa Tereza, CEP: 31010-070 - Belo Horizonte/MG (Ônibus: 9103, 9210 - Metrô: Estação Sta. Efigênia). Contato: institutohelenagreco@gmail.com

Reuniões abertas aos sábados, às 16H - militância desde 2003.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

REALIZADA A SEÇÃO "CIDADE E MEMÓRIA"

NOTÍCIA SOBRE A SEÇÃO CIDADE E MEMÓRIA – documentários e roda de conversa sobre ditadura e a Luta Antimanicomial
    Realizada no dia 30/08/2018, a seção Cidade e Memória da programação Cidade em Movimento da 12ª Cine BH (Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte). Aconteceu no Cine Sesc Palladium em Belo Horizonte/MG. "Cidade e Memória traz filmes produzidos por novos cineastas de Belo Horizonte sobre fatos históricos ocorridos no Brasil e América Latina, além de filmes que trazem marcas que a nossa cidade ainda carrega sobre os tempos da ditadura e das instituições manicomiais. Contra a ditadura e contra os manicômios, contra tudo que aprisiona e cerceia o livre direito de ir e vir, a sessão é uma resposta da cidade para os tempos sombrios que estamos vivendo”.       
        Nesta seção foram exibidos os seguintes documentários:
Vídeo - Carta (Priscila Musa);
Memória Essencial (Luciene Araújo e Ceres Canedo);
Serra Verde (Luciene Araújo);
Arara: Um filme sobre um filme sobrevivente (Lipe Canêdo).
      Após a exibição dos documentários houve roda de conversa com explanações dos diretores Priscila Musa, Luciene Araújo e Lipe Canêdo e da convidada Heloisa Greco (Bizoca), membro do Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania. A curadora da mostra Cidade em Movimento, Paula Kimo, fez a mediação.
         A roda de conversa abordou o making of dos filmes e seus temas: as marcas renitentes da ditadura militar e dos manicômios na cidade; a persistência da estratégia do esquecimento e do terrorismo de Estado; a luta contra esta situação de barbárie.
       Destacamos a participação de Maria de Fátima e Júlio (irmãos de Paulo Roberto Pereira Marques) e Valéria Costa Couto (irmã de Walquíria Afonso Costa) - familiares de guerrilheiras/os, desaparecidos políticos no Araguaia. Estiveram presentes também militantes de movimentos sociais, estudantes, usuárias/os e trabalhadoras/es em saúde mental. Agradecemos o convite e a presença de todas e todos.
         A seguir, a nossa contribuição na roda de conversa:
       A partir dos documentários exibidos, nossas reflexões giram em torno de duas questões inseparáveis que se retroalimentam as quais, a nosso ver, estão na centralidade e, ao mesmo tempo, transversalizam os quatro documentários exibidos. São elas: a estratégia do esquecimento enquanto política de Estado e a construção da cultura repressiva no Brasil sob o signo do aniquilamento e da obliteração. Trata-se da brasilidade excludente (Henrique Samet) – processo histórico de longa duração.
        Ambas foram levadas às máximas consequências durante a ditadura militar (1964-1985). Ambas seguem seu curso nestes tempos sombrios atuais sob a égide do pessimamente chamado Estado democrático de direito – Estado penal que se explicita cada vez mais como Estado policial/parafascista. O processo que muitos, inadvertidamente, chamam de redemocratização não passa de normalização defeituosa (Irene Cardoso) ou normalização da exceção brasileira/um estado de emergência permanente (Paulo Arantes): “os instrumentos do Terror de Estado não podem ser desinventados”, (...) “a democracia assim engendrada é tão punitiva quanto”, arremata ele. Como diz Tales Ab’Saber em emblemática tautologia: “O que resta da ditadura? Tudo, menos a ditadura, é claro”.
    Os quatro documentários tratam de instituições extremamente longevas fortíssimas no Brasil: o controle da memória pelo Estado; o encarceramento em massa; a tortura; o desaparecimento forçado; a segregação das classes perigosas/classes torturáveis; o racismo, o extermínio e o genocídio sistêmico dos Povos Originários.
   Além da relevância e da urgência dos temas abordados nos documentários, quero destacar também a sensibilidade e a precisão da curadoria. Os quatro filmes estabelecem interlocução orgânica e expressiva entre si. Podem ser tomados como quase um filme de montagem. De tal modo que, vistos simultaneamente, levam à urdidura de uma narrativa que nos revela uma panorâmica do processo de construção da cultura repressiva no Brasil.
  Somos levados a constatar também a complicada oposição instituído/instituinte. Ou seja: o protagonismo – mas também as limitações e a atomização – dos movimentos sociais e dos sujeitos que lutam contra a opressão procurando fazer a coisa avançar e o poder instituído travando, confundindo, enquadrando, distorcendo, destruindo, aniquilando.
    Há ainda a dialética passado/presente – aquele passado que nem sequer é passado e que nos cerca de todos os lados, “o passado que nos fez” (Caio Prado Júnior): as permanências que caracterizam a situação de barbárie vigente.
     Exploramos a seguir um pouco em cada um dos quatro documentários as duas questões propostas na roda de conversa: a estratégia do esquecimento enquanto política de Estado e a escalada do processo de construção da cultura repressiva.
1) MEMÓRIA ESSENCIAL (Luciene Araújo e Ceres Canedo)
     Começamos por este porque é aquele que nós, do Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania, conhecemos há mais tempo. Tivemos a oportunidade de acompanhar, digamos, a sua gestação.
      Quanto às fontes: o filme começa com o áudio da audiência pública da Corte Interamericana de Direitos Humanos (20 e 21 de maio 2010). A sentença, a primeira a condenar o Brasil por crimes cometidos pela ditadura, é de 24 de novembro de 2010 (Caso Gomes Lund e outros versus Brasil). Em julho de 2018 houve outra condenação importantíssima: a do caso Vladimir Herzog onde a Corte Interamericana de Direitos Humanos afirma explicitamente que a ditadura militar cometeu crimes contra a humanidade. O documentário trabalha também com alguns documentos como a publicação da Lei 9140/ 1995 (o Estado assume a responsabilidade por mortes e desaparecimentos e estabelece indenizações para os familiares das vítimas), recortes de jornais, fotos. Trabalha sobretudo com  fontes orais.
       São as fontes orais que dão o tom do documentário. Os depoimentos de Maria de Fátima (irmã de Paulo Roberto Pereira Marques) e Valéria Costa Couto (irmã de Walquíria Afonso Costa) são extremamente eloquentes. Dão conta da terrível realidade da saga dos familiares dos desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia (1972-1975) e dos movimentos que lutam por memória, verdade e justiça em busca dos restos mortais das/os guerrilheiras/os.  Afirmam, com muita propriedade, que não se trata de questão familiar de caráter privado, mas de uma causa de toda a sociedade (“da nação”, como diz Valéria) – exigência de verdade, memória e justiça. Os depoimentos de Valéria e Maria de Fátima expressam a persistência inabalável da luta dos familiares.
       A guerrilha do Araguaia é um dos episódios mais emblemáticos do período da ditadura. Sua repressão é um dos casos mais escabrosos. Traz todos os elementos e dispositivos da estratégia do esquecimento e do terrorismo de Estado - essência da ditadura militar.
     A sentença condenatória da Corte Interamericana de Direitos humanos é fruto de uma peleja que vem se arrastando desde 1982 quando 22 familiares de 25 desaparecidos políticos iniciaram uma ação judicial de natureza civil contra o Estado perante a Primeira Vara Federal do Distrito Federal (Ação Ordinária 82.00.24682-5). A demanda dos familiares era a mesma: encontrar os restos mortais dos seus entes queridos. A União é condenada também neste processo: a sentença transitou em julgado em 2007. O Estado brasileiro tem se recusado terminantemente a executá-la.
  A causa demorou uma década e meia para chegar à Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez foi encaminhada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 1995. Tudo isto graças, mais uma vez, à combatividade e persistência dos familiares. Ambas as sentenças – a interna e a internacional - têm sido mantidas na mais absoluta invisibilidade por parte do governo e da mídia corporativa, da mesma forma que o seu objeto o fora durante a ditadura. Esta mobilizou três campanhas envolvendo cerca de 20 mil militares das três armas para massacrar menos de 70 guerrilheiros e barbarizar a população local. Depois buscou obliterar a sua história e a sua memória a ponto de transformar o acontecimento em “desacontecimento” (Jacob Gorender).
      As Forças Armadas continuam a negar a existência de arquivos – alegam que eles foram incinerados com base no Decreto 79 099/1977. Estão determinadas, com o respaldo dos governos – de todos eles - a não dizer palavra sobre a Guerrilha do Araguaia. A Comissão Nacional da Verdade (CNV), cujo relatório final data de 10 de dezembro de 2014, não avançou um milímetro em nenhuma destas questões. Como, de resto, não avançou um centímetro no contencioso da ditadura militar. Continuam valendo os princípios programáticos da luta dos Comitês Brasileiros pela Anistia: nomeação, responsabilização e punição dos agentes da ditadura - eles praticaram crimes contra a humanidade, os quais são imprescritíveis, inanistiáveis e inafiançáveis; esclarecimento circunstanciado das torturas, mortes e desaparecimentos forçados; abertura irrestrita dos arquivos da repressão; solução para a questão dos desaparecidos; desmantelamento do aparato repressivo.
    Existe um agravante desolador entre os fatores que reforçam a estratégia do esquecimento, o qual envolve o espaço acadêmico. Trata-se de um tipo de revisionismo presente em certa historiografia – que não é hegemônica, mas não deixa de ser representativa – que incorpora a teoria dos dois demônios: direita e esquerda teriam sido igualmente responsáveis pelo golpe, ambas seriam refratárias à democracia.  Militares e militantes revolucionários teriam cometido iniquidades durante a ditadura militar, cada qual a seu modo, já que as duas partes pegaram em armas. Nesta lógica, os militares que praticaram crimes contra a humanidade – torturaram, estupraram, mutilaram, mataram e fizeram desaparecer corpos - devem ser anistiados completa e automaticamente.
      Fica evidente a desproporção do nivelamento do terrorismo de Estado com a violência revolucionária, como se a guerrilha tivesse prática idêntica à do aparato repressivo montado pela ditadura, que institucionalizou a prática de torturas, mortes e desaparecimentos.
    Comete-se confusão conceitual que leva à desqualificação do projeto revolucionário da esquerda. Trata-se do reducionismo de considerar a democracia burguesa como único projeto histórico legítimo e viável. As tentativas de testificação da existência de um pacto social que teria legitimado a ditadura e a inimputabilidades dos torturadores e assassinos de opositores estão presentes nesta historiografia revisionista. Alega-se que a ditadura foi apoiada por boa parte da sociedade. Omite-se que outra boa parte a repudiou e/ou combateu o tempo todo. Os movimentos sociais e as lutas contra a ditadura estão ausentes deste tipo de análise: há uma capitulação diante do que Walter Benjamin chama de história dos vencedores, aquela que tem como sujeitos exclusivos o Estado, a institucionalidade e as classes dominantes.
      Pois bem, esta historiografia revisionista acaba de dar espaço ao mais escabroso negacionismo com a aprovação na UnB de tese de doutorado(?) sobre a Guerrilha do Araguaia (com o título calhorda de Borboletas e Lobisomens) e sua recente publicação pela Editora Francisco Alves. Trata-se de mais uma afronta infame aos familiares de desaparecidos políticos na sua batalha por memória, verdade e justiça e sórdida agressão às guerrilheiras/os que tombaram na luta. O autor é um certo Hugo Studart. Ele reproduz em mais de 600 páginas a versão obscena dos porões da ditadura a partir de documentos aos quais só ele tem acesso - apócrifos, portanto. É flagrante a ocultação de fontes. Documentos repassados certamente pelo pai dele, o repressor Ten. Aviador Jonas Alves Correa que tinha alto posto de comando no Centro de informações de Segurança da Aeronáutica (CISA) durante o massacre da Guerrilha. Sinal destes tempos sombrios: obscurantismo cultural e acadêmico, deterioração/falsificação da pesquisa científica, aniquilamento da construção do conhecimento, fascistização da sociedade. Reforço, portanto da fabricação do desacontecimento e da tentativa de invisibilização da história.
2) ARARA: UM FILME SOBRE UM FILME SOBREVIVENTE (Lipe  Canêdo)
     Por falar em desacontecimento e invisibilização passemos ao  Arara: um filme sobre um filme sobrevivente. Um filme dentro do filme – fantástica metalinguagem que vem exatamente para dar visibilidade a uma das maiores iniquidades da ditadura de que se tem notícia. Talvez a maior delas, se é que é possível dimensionar/graduar a violência e o terrorismo de Estado.
        A invisibilidade dos Povos Originários começa pelo próprio nome coletivo pelo qual são designados (índio) – primeira violência simbólica, processo de ocultamento engendrado pelo colonizador. Os Povos Originários são os mais atingidos pela opressão/repressão em todo o período de apuração da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de 1946 a 1988: opressão continuada – na verdade são mais de 500 anos de extermínio. De novo, a construção da brasilidade excludente.  Índio bom é índio integrado ou índio morto – é este o índio instituído como elemento definidor da nação.
        Arara (1970) - o filme de arquivo objeto do documentário exibido - é o registro da primeira formatura da Guarda Rural Indígena (GRIN) no Batalhão da PM Voluntários da Pátria, um Batalhão Escola de formação de soldados – um dos centros de tortura de Belo Horizonte durante a ditadura. As imagens de 1970 são de Gesco von Puttmaker. O curso destes formandos se deu de novembro de 1969 a janeiro de 1970. O filme foi exibido para Marcelo Zelic (Grupo Tortura Nunca Mais/SP) por Rodrigo Piquet no Museu do Índio, Rio de Janeiro, em 2012.
        Os Povos Originários sempre tiveram sua história, suas lutas, seus saberes, sua cultura invisibilizados e/ou demonizados. No Arara (1970) são expostos de forma escancarada ao desfilarem para uma festiva pequena multidão – inclusive crianças - e uma esfuziante bancada das mais altas autoridades estaduais e nacionais, composta por civis e militares. Os formandos exibem as técnicas de tortura aprendidas no curso – que incluem contenção e pau de arara. Trata-se do mais infame processo de naturalização do aviltamento, manifestação da banalidade do mal (Hannah Arendt). E a plateia aplaudindo e pedindo bis - como diria Gonzaguinha.
        O Relatório Figueiredo, também abordado no documentário, foi produzido em 1967-68 pelo procurador Jader Figueiredo Correia, encomendado pelo então ministro do interior Albuquerque Lima. Foi recuperado quase intacto em 2013 – estava depositado no Museu do Índio. Contém cerca de 7 mil páginas que trazem a essência da política indigenista praticada no Brasil: preação, escravização, caçadas humanas, chacinas no atacado e no varejo, extermínio, guerra química, inoculação de doenças, envenenamento, estupros sistemáticos, corrupção inominável, esbulho de terras e bens dos indígenas. Este relatório/testemunho sumiu convenientemente durante e depois da ditadura. Alegava-se que também teria sido incinerado.
        Em 1967, Fundação Nacional do Índio (FUNAI) substitui o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910 como Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (leia-se, localização de servos, escravos e similares). O primeiro presidente da FUNAI, Queirós Campos, teve a infame ideia de criar a GRIN. Esta deveria formar numeroso pelotão de índios com a função precípua de reprimir índios e defender brancos civilizados, suas propriedades, seu Estado. Seu chefe era o capitão da Polícia Militar Manuel dos Santos Pinheiro. O treinamento – instrução policial e militar que incluía aulas de tortura - ficou a cargo do Batalhão Escola da Polícia Militar de Belo Horizonte. O gen. Oscar Gerônimo Bandeira de Mello, primeiro militar presidente da FUNAI (1970-74), foi um dos mais ferozes defensores das empresas de mineração e das empreiteiras. Donde foi também um dos mais ferozes repressores/exterminadores dos Povos Indígenas.
        Foi criado ainda o Reformatório Krenak, a única cadeia oficial para indígenas – verdadeiro campo de concentração – em Resplendor, Minas Gerais em reação à rebelião dos Maxacali de 1966. Outro campo de concentração para indígenas foi a Fazenda Guarani, instalada em propriedade da Polícia Militar de Minas Gerais no município de Carmésia. Além desses campos de concentração oficiais, havia inúmeros centros clandestinos – o principal, Icatu, é anterior ao Reformatório Krenak. Tais campos de concentração recebiam indígenas de várias etnias de todo o país, os quais foram ali presos, torturados e segregados – muitos morreram e desapareceram.
       Há um cálculo conservador que estabelece que quase 9 mil indígenas foram vítimas dos massacres perpetrados das mais diversas formas pela ditadura militar, que os transformou em inimigos internos a serem removidos por constituírem obstáculo ao seu projeto de desenvolvimento e segurança - repaginação do ordem e progresso positivista. Seus nomes, no entanto, não compõem lista alguma de mortos e desaparecidos. No relatório final da Comissão Nacional da Verdade, pela primeira vez um documento oficial do Estado aborda a questão, mas de maneira insuportavelmente lacunar, precária e, sobretudo, ineficaz: não há perspectiva de reparação ou anistia para os Povos Indígenas trucidados pela ditadura – não há o mínimo resgate da sua memória, verdade e justiça.  Eles não têm nomes, rostos, identidade, parentes, etnia, história. Manuel Pinheiro e os seus colegas torturadores e exterminadores de indígenas continuam a viver bem com uma aposentadoria bacana, como disse Paula Berbet no documentário.
        Muitos desses dados foram extraídos do relatório de Marcelo Zelic intitulado Comissão Nacional da Verdade e a questão indígena: a um passo da omissão, de 2014. Ele destaca duas questões reveladas pela criação da GRIN e pelo filme Arara (1970):
      - A perversidade sem limites de usar os indígenas para reprimir indígenas, fator de aviltamento, desagregação e trauma indeléveis. Eles foram utilizados, inclusive, como mateiros na repressão à Guerrilha do Araguaia.
        - O fator Dan Mitrione – A comprovação cabal do ensino de técnicas de tortura nos cursos de formação de policiais e soldados. O fato de a GRIN ter sido treinada e coordenada pela Polícia Militar de Minas Gerais não é mero acaso. Nos anos 1960 tinha domicílio em Belo Horizonte o agente do FBI/CIA Dan Mitrione. Era tão respeitado aqui, que deu nome a uma rua  no Bairro das Indústrias. Em 1983, graças a projeto dos então vereadores Helena Greco e Arthur Vianna – juntamente com movimentos sociais - esta rua passou a chamar José Carlos da Matta Machado - estudante de direito mineiro, militante da Ação Popular Marxista Leninista (APML), assassinado sob tortura pela ditadura militar em 1973. Na década de 1960, Dan Mitrione estava a serviço da USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional). Sua função precípua era ensinar como reprimir eficazmente, com concentração em técnicas de tortura, que ele considerava uma ciência. A PMMG foi treinada por ele. Suas cobaias eram mendigos, presos ditos comuns e presos políticos. Atuou também no Rio e em São Paulo. No final dos anos 1960 o maestro de la tortura, como passou a ser chamado, foi para o Uruguai onde teve o fim merecido: foi capturado e justiçado pelos Tupamaros, em 1970. Ele é retratado na personagem de Yves Montand do filme Estado de sítio de Costa – Gavras (1972). Há uma cena que o mostra dando aula prática de tortura, com uma enorme bandeira do Brasil ao fundo. O filme evidentemente foi censurado no Brasil da ditadura.
        Voltando ao Arara: os militares que ministraram o intensivão de três meses para a turma da GRIN  são multiplicadores dos ensinamentos do maestro de la tortura. Trata-se de projeto institucionalizado, com cadeia de comando e anuência dos governos estadual e federal. Resta nomeá-los e responsabilizá-los todos: quem ministrou, quem ordenou, quem permitiu. O governador Israel Pinheiro, seu secretário de educação (???) José Maria Alkmin (tio-avô de Geraldo Alkmin/PSDB), o cap. PM Manuel Pinheiro, o ten. cel. Costa Cavalcanti (signatário do AI-5) são algumas as autoridades que se mostravam esfuziantes no desfile de  formatura da GRIN. A militarização da questão indígena foi levada ao paroxismo em todo o país, com destaque para Minas Gerais.
        O relatório final da CNV apresenta exíguas 35 páginas sobre a questão indígena, que segue sendo tratada como tabu. Os documentos revelados não foram incorporados ao texto. Não se abriu linha alguma de investigação apesar da prodigalidade de provas e evidências. Estas 35 páginas quase não passam de um lacônico “há mortos e feridos”, como observa Marcelo Zelic.
        O quadro atual continua devastador, como sabemos: o governo golpista Michel Temer (MDB/PSDB/Progressistas e outros) tem exacerbado a iniquidade. Seu ministro da agricultura é ninguém menos que o latifundiário, dito rei da soja, Blairo Maggi (Progressistas). Aprofunda-se a militarização de todas as instâncias do governo, inclusive da FUNAI. Osmar Serraglio (Progressistas) – que foi também Ministro da Justiça e Segurança Pública deste governo espúrio - é o relator da PEC 215/2000 cujo objetivo é garantir ao legislativo, dominado pelas bancadas Boi/Bala/Bíblia/Jaula, a prerrogativa de decidir sobre a demarcação de terras indígenas e quilombolas, ou seja, absolutizar a espoliação. Há também a questão do marco temporal, dispositivo fabricado para promover o esbulho total das terras indígenas ancestrais, os tekohas – para os Povos Originários o lugar onde se é, sem o qual/longe do qual não há vida possível. Existem hoje pelo menos 189 iniciativas no congresso contra os direitos dos Povos Indígenas. Somos ainda submetidas/os às mais infames declarações racistas, de Bolsonaro (PSL), do gen. Hamilton Mourão, seu vice, e demais sequazes – neoconservadores/fascistas entusiastas da ditadura, fãs do torturador-mor Brilhante Ustra, inimigos das lutas da classe trabalhadora, inimigos do Povo Negro e dos Povos Indígenas, dos movimentos feministas e LGBTQIs, inimigos da cultura e da diversidade. Há ainda processo de destruição igualmente criminoso da história, dos saberes, línguas e conhecimentos dos Povos Indígenas. São tão ameaçados de extinção quanto a sobrevivência física deles: trata-se de etnocídio e epistemicídio sistêmicos.
        Felizmente, no entanto, a dialética joga a nosso favor: se são mais de 500 anos de opressão, são também mais de 500 anos de resistência. A batalha é árdua, contínua, diária, sangrenta – é assim que a permanente mobilização dos Povos Indígenas tem combatido os diversos ataques sofridos ao longo de mais de cinco séculos.
 3) SERRA VERDE (Luciene Araújo)
        Em setembro de 2012, após décadas trancafiados, 165 homens e mulheres começam a deixar o último hospício da grande BH, a Clínica Serra Verde (Vespasiano/MG). Desfaçatez dupla da direção do hospício: chamar campo de concentração de clínica e responsabilizar os baixos valores que seriam repassados pelo SUS pela degradação de tal masmorra.
       Tema relevante sobretudo agora quando assistimos a processo galopante de remanicomialização perpetrado pelo Ministério da Saúde, quase sempre na calada da noite. O projeto do governo federal é o resgate de hospícios e o reforço das comunidades terapêuticas, os quais estão na centralidade do financiamento público.
        Higienismo/eugenismo/estereotipismo/periculosidade e loucura para criminalizar, estigmatizar, controlar e confinar as eternas classes perigosas, classes torturáveis: estas últimas novidades do século XIX (Cesare Lombroso, Gobineau et caterva) constituem o paradigma da política para a saúde mental do governo federal.  Leia-se: legitimação do confinamento e controle das/os não-hegemônicas/os.
        O espectro dos manicômios nos ronda e vem acompanhado dos cifrões públicos – denuncia a Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA). Lembremos que data de 1990 a implementação dos primeiros serviços substitutivos, conquista da luta pela Reforma Psiquiátrica Antimanicomial.
        O desmonte das leis antimanicomiais (Lei 11 802/ 1995 e Lei 10 216/2001), da política de redução de danos e das políticas públicas constitui mais uma ofensiva reacionária e demofóbica do governo Temer. Trata-se de tentativa de aniquilar projetos construídos pela combatividade das/os usuárias/os e das/os trabalhadoras/es em saúde mental ao longo de 40 anos
        Franco Basaglia, a grande referência da luta antimanicomial, esteve em Belo Horizonte em 1978-1979. Ele escancarou para o Brasil e para o mundo a denúncia do campo de concentração/casa de torturas de Barbacena reforçando a luta iniciada pelos trabalhadores em saúde mental. Segundo ele, não se humanizam instituições totais - elas precisam ser destruídas: deve ser permanente a nossa “luta contra a violência e a exclusão, que estão na base de todas as relações em nossa sociedade”. É emblemática a sua sustentação da necessidade da luta pela desinstitucionalização em todas as esferas ao afirmar que o que caracteriza as instituições é a nítida divisão entre os que têm poder e os que não têm” – é a “relação de opressão e violência entre poder e não poder” que tem que ser permanentemente desconstruída.
4) VÍDEO-CARTA (Priscila Musa)
        Belo documentário que funciona como coda dos filmes desta mostra, por isto o deixamos para o final: aborda todos os temas colocados anteriormente. Coda significa seção conclusiva de uma composição musical/arremate. Usamos o termo musical porque foi esta a sensação que o filme nos passou.
       Vejamos, então, fragmentos do seu conteúdo, por ordem de entrada:
- Operação Condor / terrorismo de Estado / Internacional da repressão: Brasil-Uruguai (onde Dan Mitrione foi justiçado pelos Tupamaros em 1970)- Argentina / Escola de Mecânica da Armada (ESMA) / Rio da Prata (mortalha de milhares dos 30 mil desaparecidos políticos argentinos).
- Os lugares de memória e direitos humanos no Uruguai e na Argentina.
- 2013 - Casarão da Rua Manaus, Santa Efigênia-BH (Ocupação Espaço Comum Luíz Estrela) – Evocação das belas jornadas de julho/2013, o Casarão é também lugar de memória ressignificado sem perda da sua dimensão trágica. Trata-se do Complexo arquitetônico da Psiquiatria da Infância e Adolescência da Fundação Hospitalar de Minas Gerais. Instituição total cercada por instituições totais: Batalhão da PM (centro de tortura durante a ditadura), hospital militar, Igreja: o entorno constitui um cadinho do aparato repressivo e do aparato ideológico do Estado. Os grafismos das crianças internadas ficam a denunciar a arquitetura do claustro e do horror. 
- Vício de origem de BH: cidade planejada sob o signo da eugenia, do higienismo, da quadriculação, da opressão, do controle pan-óptico.
- A perfeita concepção de memória dos Povos Indígenas: não o que se guarda, mas o que se transmite – é preciso contar a história. Não podemos perder a batalha da construção da narrativa contra hegemônica. Precisamos tecer permanentemente a contra memória e o contra discurso.
- A bela homenagem às Madres de Plaza de Mayo / La Ronda de Las Madres: nas suas consignas, a luta contra o terrorismo de Estado se soma à luta contra o terrorismo do capital num tributo a seus entes queridos mortos e desaparecidos pela ditadura argentina (1976-1983):
O CAPITALISMO FINANCEIRO É TERRORISTA!
        Desfecho de Vídeo-Carta: possibilidade de evasão da opressão/ passagem/resgate - o respiradouro penosamente aberto no Casarão da Rua Manaus remete à passagem no muro do hospício usada para comunicação com o exterior/com a vida, mostrada por Valéria em Serra Verde.
        A título de conclusão:
    Cidade em Movimento / Cidade e Memória / Memória em Movimento: valem todas as variações. Resgatar a Cidade enquanto memória organizada da sociedade demanda o exercício permanente da perplexidade, da indignação, da negação resoluta. Demanda luta contínua contra a estratégia do esquecimento. Não queremos a cidade construída pelo inimigo a que se refere Jacques Rancière (citação final do Vídeo-Carta). Queremos aquela Cidade prevista por Carlos Drummond de Andrade: uma cidade sem portas, de casa sem armadilhas (...) uma terra sem bandeiras, sem igrejas nem quartéis (...) um jeito só de viver, mas nesse jeito a variedade, a multiplicidade toda que há dentro de cada um...
      Nestes tempos sombrios, vamos concluir com um trecho da Carta a um poeta suicida, poema de Maiakovski (também ele suicida):
Por enquanto há escória de sobra.
O tempo é curto, mãos a obra.
É preciso transformar a vida
Para cantá-la em seguida.
PELO FIM DO GENOCÍDIO DOS POVOS ORIGINÁRIOS!
PELO DESMANTELAMENTO DO APARATO REPRESSIVO!
POR UMA SOCIEDADE SEM PRISÕES E SEM MANICÔMIOS!
10 de setembro de 2018
Instituto Helena Greco de direitos Humanos e Cidadania 

LEIA TAMBÉM:

CIDADE E MEMÓRIA - DOCUMENTÁRIOS SOBRE A DITADURA E A LUTA ANTIMANICOMIAL