NOTÍCIA SOBRE A SEÇÃO CIDADE E MEMÓRIA – documentários e roda de conversa sobre ditadura e
a Luta Antimanicomial
Realizada no dia 30/08/2018, a seção Cidade
e Memória da programação Cidade em Movimento da 12ª Cine BH (Mostra Internacional de
Cinema de Belo Horizonte). Aconteceu no Cine Sesc Palladium em Belo Horizonte/MG. "Cidade e Memória traz
filmes produzidos por novos cineastas de Belo Horizonte sobre fatos históricos
ocorridos no Brasil e América Latina, além de filmes que trazem marcas que a
nossa cidade ainda carrega sobre os tempos da ditadura e das instituições
manicomiais. Contra a ditadura e contra os manicômios, contra tudo que
aprisiona e cerceia o livre direito de ir e vir, a sessão é uma resposta da
cidade para os tempos sombrios que estamos vivendo”.
Nesta seção foram exibidos os seguintes documentários:
Nesta seção foram exibidos os seguintes documentários:
Vídeo - Carta (Priscila Musa);
Memória Essencial (Luciene Araújo e Ceres Canedo);
Serra Verde (Luciene
Araújo);
Arara: Um filme sobre um filme sobrevivente (Lipe Canêdo).
Após a exibição dos documentários houve
roda de conversa com explanações dos diretores Priscila Musa, Luciene Araújo e
Lipe Canêdo e da convidada Heloisa
Greco (Bizoca), membro do Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e
Cidadania. A curadora da mostra Cidade em
Movimento, Paula Kimo, fez a mediação.
A roda de conversa abordou o making of dos filmes e seus temas: as marcas renitentes da ditadura militar e dos
manicômios na cidade; a persistência da estratégia
do esquecimento e do terrorismo de Estado; a luta contra esta situação de
barbárie.
Destacamos a participação de Maria de Fátima e Júlio (irmãos de Paulo Roberto
Pereira Marques) e Valéria Costa Couto (irmã de Walquíria Afonso Costa) - familiares de guerrilheiras/os, desaparecidos políticos no Araguaia. Estiveram presentes também militantes de
movimentos sociais, estudantes, usuárias/os e trabalhadoras/es em saúde mental. Agradecemos
o convite e a presença de todas e todos.
A
seguir, a nossa contribuição na roda de conversa:
A partir dos documentários exibidos, nossas reflexões giram
em torno de duas questões inseparáveis que se retroalimentam as quais, a nosso
ver, estão na centralidade e, ao mesmo tempo, transversalizam os quatro documentários
exibidos. São elas: a estratégia do esquecimento enquanto
política de Estado e a construção da
cultura repressiva no Brasil sob o signo do aniquilamento e da obliteração.
Trata-se da brasilidade excludente (Henrique
Samet) – processo histórico de longa duração.
Ambas foram levadas às
máximas consequências durante a ditadura militar (1964-1985). Ambas seguem seu
curso nestes tempos sombrios atuais
sob a égide do pessimamente chamado Estado
democrático de direito – Estado penal que se explicita cada vez mais como
Estado policial/parafascista. O processo que muitos, inadvertidamente, chamam
de redemocratização não passa de normalização defeituosa (Irene Cardoso)
ou normalização da exceção brasileira/um
estado de emergência permanente (Paulo Arantes): “os instrumentos do Terror
de Estado não podem ser desinventados”, (...) “a democracia assim engendrada é tão punitiva quanto”, arremata ele. Como
diz Tales Ab’Saber em emblemática tautologia: “O que resta da ditadura? Tudo,
menos a ditadura, é claro”.
Os quatro documentários tratam de instituições extremamente
longevas fortíssimas no Brasil: o controle da memória pelo Estado; o
encarceramento em massa; a tortura; o desaparecimento forçado; a segregação das
classes perigosas/classes torturáveis;
o racismo, o extermínio e o genocídio sistêmico dos Povos Originários.
Além da relevância e da urgência dos temas
abordados nos documentários, quero destacar também a sensibilidade e a precisão
da curadoria. Os quatro filmes estabelecem interlocução orgânica e expressiva
entre si. Podem ser tomados como quase um filme de montagem. De tal modo que,
vistos simultaneamente, levam à urdidura de uma narrativa que nos revela uma
panorâmica do processo de construção da cultura repressiva no Brasil.
Somos levados a constatar também a complicada
oposição instituído/instituinte. Ou
seja: o protagonismo – mas também as limitações e a atomização – dos movimentos
sociais e dos sujeitos que lutam contra a opressão procurando fazer a coisa
avançar e o poder instituído travando, confundindo, enquadrando, distorcendo,
destruindo, aniquilando.
Há ainda a dialética passado/presente – aquele
passado que nem sequer é passado e que nos cerca de todos os lados, “o passado
que nos fez” (Caio Prado Júnior): as permanências que caracterizam a situação
de barbárie vigente.
Exploramos a seguir um pouco em cada um dos quatro
documentários as duas questões propostas na roda de conversa: a estratégia do esquecimento enquanto
política de Estado e a escalada do
processo de construção da cultura repressiva.
1) MEMÓRIA ESSENCIAL (Luciene Araújo e Ceres Canedo)
Começamos por este porque é aquele que nós, do
Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania, conhecemos há mais
tempo. Tivemos a oportunidade de acompanhar, digamos, a sua gestação.
Quanto às fontes:
o filme começa com o áudio da audiência pública da Corte Interamericana de
Direitos Humanos (20 e 21 de maio 2010). A sentença, a primeira a condenar o
Brasil por crimes cometidos pela ditadura, é de 24 de novembro de 2010 (Caso
Gomes Lund e outros versus Brasil). Em
julho de 2018 houve outra condenação importantíssima: a do caso Vladimir Herzog
onde a Corte Interamericana de Direitos Humanos afirma explicitamente que a
ditadura militar cometeu crimes contra a
humanidade. O documentário trabalha também com alguns documentos como a
publicação da Lei 9140/ 1995 (o Estado assume a responsabilidade por mortes e desaparecimentos e estabelece
indenizações para os familiares das vítimas), recortes de jornais, fotos.
Trabalha sobretudo com fontes orais.
São as fontes orais que dão o tom do documentário. Os
depoimentos de Maria de Fátima (irmã de Paulo Roberto Pereira Marques) e
Valéria Costa Couto (irmã de Walquíria Afonso Costa) são extremamente
eloquentes. Dão conta da terrível realidade da saga dos familiares dos desaparecidos políticos na Guerrilha do
Araguaia (1972-1975) e dos movimentos que lutam por memória, verdade e justiça em busca dos restos mortais das/os
guerrilheiras/os. Afirmam, com muita
propriedade, que não se trata de questão familiar de caráter privado, mas de uma
causa de toda a sociedade (“da nação”, como diz Valéria) – exigência de
verdade, memória e justiça. Os depoimentos de Valéria e Maria de Fátima
expressam a persistência inabalável da luta dos familiares.
A guerrilha do Araguaia é um dos episódios mais emblemáticos
do período da ditadura. Sua repressão é um dos casos mais escabrosos. Traz
todos os elementos e dispositivos da estratégia
do esquecimento e do terrorismo de Estado - essência da ditadura militar.
A sentença condenatória da
Corte Interamericana de Direitos humanos é fruto de uma peleja que vem se
arrastando desde 1982 quando 22 familiares de 25 desaparecidos políticos iniciaram uma ação judicial de natureza
civil contra o Estado perante a Primeira Vara Federal do Distrito Federal (Ação
Ordinária 82.00.24682-5). A demanda dos familiares era a mesma: encontrar os
restos mortais dos seus entes queridos. A União é condenada também neste
processo: a sentença transitou em julgado em 2007. O Estado brasileiro tem se
recusado terminantemente a executá-la.
A causa demorou uma década e
meia para chegar à Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez foi
encaminhada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 1995. Tudo isto graças,
mais uma vez, à combatividade e persistência dos familiares. Ambas as sentenças
– a interna e a internacional - têm sido mantidas na mais absoluta invisibilidade
por parte do governo e da mídia corporativa, da mesma forma que o seu objeto o
fora durante a ditadura. Esta mobilizou três campanhas envolvendo cerca de 20
mil militares das três armas para massacrar menos de 70 guerrilheiros e
barbarizar a população local. Depois buscou obliterar a sua história e a sua
memória a ponto de transformar o acontecimento em “desacontecimento” (Jacob Gorender).
As Forças Armadas continuam
a negar a existência de arquivos – alegam que eles foram incinerados com base
no Decreto 79 099/1977. Estão determinadas, com o respaldo dos governos – de
todos eles - a não dizer palavra sobre a Guerrilha do Araguaia. A Comissão
Nacional da Verdade (CNV), cujo relatório final data de 10 de dezembro de 2014,
não avançou um milímetro em nenhuma destas questões. Como, de resto, não
avançou um centímetro no contencioso da ditadura militar. Continuam valendo os
princípios programáticos da luta dos Comitês Brasileiros pela Anistia:
nomeação, responsabilização e punição dos agentes da ditadura - eles praticaram
crimes contra a humanidade, os quais são imprescritíveis, inanistiáveis e inafiançáveis;
esclarecimento circunstanciado das torturas, mortes e desaparecimentos
forçados; abertura irrestrita dos arquivos da repressão; solução para a questão
dos desaparecidos; desmantelamento do
aparato repressivo.
Existe um agravante desolador entre os fatores
que reforçam a estratégia do esquecimento,
o qual envolve o espaço acadêmico. Trata-se de um tipo de revisionismo presente
em certa historiografia – que não é hegemônica, mas não deixa de ser
representativa – que incorpora a teoria
dos dois demônios: direita e esquerda teriam sido igualmente responsáveis
pelo golpe, ambas seriam refratárias à democracia. Militares e militantes revolucionários teriam
cometido iniquidades durante a ditadura militar, cada qual a seu modo, já que
as duas partes pegaram em armas. Nesta lógica, os militares que praticaram
crimes contra a humanidade – torturaram, estupraram, mutilaram, mataram e
fizeram desaparecer corpos - devem ser anistiados completa e automaticamente.
Fica evidente a desproporção do
nivelamento do terrorismo de Estado com a violência revolucionária, como se a
guerrilha tivesse prática idêntica à do aparato repressivo montado pela
ditadura, que institucionalizou a prática de torturas, mortes e desaparecimentos.
Comete-se confusão conceitual que leva à
desqualificação do projeto revolucionário da esquerda. Trata-se do reducionismo
de considerar a democracia burguesa como único projeto histórico legítimo e
viável. As tentativas de testificação da existência de um pacto social que
teria legitimado a ditadura e a inimputabilidades dos torturadores e assassinos
de opositores estão presentes nesta historiografia revisionista. Alega-se que a
ditadura foi apoiada por boa parte da sociedade. Omite-se que outra boa parte a
repudiou e/ou combateu o tempo todo. Os movimentos sociais e as lutas contra a
ditadura estão ausentes deste tipo de análise: há uma capitulação diante do que
Walter Benjamin chama de história dos
vencedores, aquela que tem como sujeitos exclusivos o Estado, a
institucionalidade e as classes dominantes.
Pois bem, esta historiografia
revisionista acaba de dar espaço ao mais escabroso negacionismo com a aprovação na UnB de tese de doutorado(?) sobre a
Guerrilha do Araguaia (com o título calhorda de Borboletas e Lobisomens) e sua recente publicação pela Editora
Francisco Alves. Trata-se de mais
uma afronta infame aos familiares de desaparecidos
políticos na sua batalha por memória, verdade e justiça e sórdida agressão
às guerrilheiras/os que tombaram na luta. O autor é um certo Hugo Studart. Ele
reproduz em mais de 600 páginas a versão obscena dos porões da ditadura a
partir de documentos aos quais só ele tem acesso - apócrifos, portanto. É flagrante
a ocultação de fontes. Documentos repassados certamente pelo pai dele, o repressor
Ten. Aviador Jonas Alves Correa que tinha alto posto de comando no Centro de informações
de Segurança da Aeronáutica (CISA) durante o massacre da Guerrilha. Sinal
destes tempos sombrios: obscurantismo cultural e acadêmico,
deterioração/falsificação da pesquisa científica, aniquilamento da construção
do conhecimento, fascistização da sociedade. Reforço, portanto da fabricação do
desacontecimento
e da tentativa de invisibilização
da história.
2) ARARA: UM FILME
SOBRE UM FILME SOBREVIVENTE (Lipe Canêdo)
Por falar em desacontecimento e invisibilização
passemos ao Arara: um filme
sobre um filme sobrevivente. Um filme dentro do filme – fantástica
metalinguagem que vem exatamente para dar visibilidade a uma das maiores
iniquidades da ditadura de que se tem notícia. Talvez a maior delas, se é que é
possível dimensionar/graduar a violência e o terrorismo de Estado.
A invisibilidade dos
Povos Originários começa pelo próprio nome coletivo pelo qual são
designados (índio) – primeira
violência simbólica, processo de ocultamento engendrado pelo colonizador. Os
Povos Originários são os mais atingidos pela opressão/repressão em todo o
período de apuração da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de 1946 a 1988: opressão
continuada – na verdade são mais de 500 anos de extermínio. De novo, a construção
da brasilidade excludente. Índio bom é índio integrado ou índio morto –
é este o índio instituído como
elemento definidor da nação.
Arara (1970) - o filme de arquivo objeto do documentário exibido
- é o registro da primeira formatura da Guarda Rural Indígena (GRIN) no Batalhão
da PM Voluntários da Pátria, um Batalhão Escola de formação de soldados – um
dos centros de tortura de Belo Horizonte durante a ditadura. As imagens de 1970
são de Gesco von Puttmaker. O curso
destes formandos se deu de novembro
de 1969 a
janeiro de 1970. O filme foi exibido para Marcelo Zelic (Grupo Tortura Nunca Mais/SP)
por Rodrigo Piquet no Museu do Índio, Rio de Janeiro, em 2012.
Os
Povos Originários sempre tiveram sua história, suas lutas, seus saberes, sua
cultura invisibilizados e/ou
demonizados. No Arara (1970) são
expostos de forma escancarada ao desfilarem para uma festiva pequena multidão –
inclusive crianças - e uma esfuziante bancada das mais altas autoridades estaduais e nacionais,
composta por civis e militares. Os formandos
exibem as técnicas de tortura aprendidas no curso – que incluem contenção e pau
de arara. Trata-se do mais infame processo de naturalização do aviltamento,
manifestação da banalidade do mal
(Hannah Arendt). E a plateia aplaudindo e
pedindo bis - como diria Gonzaguinha.
O Relatório Figueiredo, também
abordado no documentário, foi produzido em 1967-68 pelo procurador
Jader Figueiredo Correia, encomendado pelo então ministro do interior
Albuquerque Lima. Foi recuperado quase intacto em 2013 – estava depositado no
Museu do Índio. Contém cerca de 7 mil páginas que trazem a essência da política
indigenista praticada no Brasil: preação, escravização, caçadas humanas, chacinas
no atacado e no varejo, extermínio, guerra química, inoculação de doenças,
envenenamento, estupros sistemáticos, corrupção inominável, esbulho de terras e bens dos indígenas. Este
relatório/testemunho sumiu convenientemente durante e depois da ditadura.
Alegava-se que também teria sido incinerado.
Em 1967, Fundação Nacional
do Índio (FUNAI) substitui o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910
como Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais
(leia-se, localização de servos, escravos e similares). O primeiro
presidente da FUNAI, Queirós Campos, teve a infame ideia de criar a GRIN. Esta
deveria formar numeroso pelotão de índios
com a função precípua de reprimir índios
e defender brancos civilizados, suas propriedades, seu Estado. Seu chefe era o
capitão da Polícia Militar Manuel dos Santos Pinheiro. O treinamento –
instrução policial e militar que incluía aulas de tortura - ficou a cargo do
Batalhão Escola da Polícia Militar de Belo Horizonte. O gen. Oscar
Gerônimo Bandeira de Mello, primeiro militar presidente da FUNAI (1970-74), foi
um dos mais ferozes defensores das empresas de mineração e das empreiteiras. Donde
foi também um dos mais ferozes repressores/exterminadores dos Povos Indígenas.
Foi criado
ainda o Reformatório Krenak, a única
cadeia oficial para indígenas – verdadeiro campo de concentração – em
Resplendor, Minas Gerais em reação à rebelião dos Maxacali de 1966. Outro campo
de concentração para indígenas foi a Fazenda
Guarani, instalada em propriedade da Polícia Militar de Minas Gerais no
município de Carmésia. Além desses campos de concentração oficiais, havia
inúmeros centros clandestinos – o principal, Icatu, é anterior ao Reformatório Krenak. Tais campos de
concentração recebiam indígenas de várias etnias de todo o país, os quais foram
ali presos, torturados e segregados – muitos morreram e desapareceram.
Há um cálculo conservador
que estabelece que quase 9 mil indígenas foram vítimas dos massacres
perpetrados das mais diversas formas pela ditadura militar, que os transformou
em inimigos internos a serem removidos por constituírem obstáculo ao
seu projeto de desenvolvimento e
segurança - repaginação do ordem e
progresso positivista. Seus nomes, no entanto, não compõem lista alguma de
mortos e desaparecidos. No relatório
final da Comissão Nacional da Verdade, pela
primeira vez um documento oficial do Estado aborda a questão, mas de maneira insuportavelmente
lacunar, precária e, sobretudo, ineficaz: não há perspectiva de reparação ou
anistia para os Povos Indígenas trucidados pela ditadura – não há o mínimo
resgate da sua memória, verdade e justiça.
Eles não têm nomes, rostos, identidade, parentes, etnia, história. Manuel
Pinheiro e os seus colegas torturadores e exterminadores de indígenas continuam
a viver bem com uma aposentadoria bacana,
como disse Paula Berbet no documentário.
Muitos desses dados foram
extraídos do relatório de Marcelo Zelic intitulado Comissão Nacional da Verdade e a questão indígena: a um passo da omissão, de 2014. Ele
destaca duas questões reveladas pela criação da GRIN e pelo filme Arara
(1970):
- A perversidade
sem limites de usar os indígenas para reprimir indígenas, fator de aviltamento,
desagregação e trauma indeléveis. Eles foram utilizados, inclusive, como
mateiros na repressão à Guerrilha do Araguaia.
- O fator
Dan Mitrione – A comprovação cabal do ensino de técnicas de tortura nos cursos
de formação de policiais e soldados. O fato de a GRIN ter sido treinada e
coordenada pela Polícia Militar de Minas Gerais não é mero acaso. Nos anos 1960
tinha domicílio em Belo Horizonte o agente do FBI/CIA Dan Mitrione. Era tão
respeitado aqui, que deu nome a uma rua no Bairro das Indústrias. Em 1983, graças a
projeto dos então vereadores Helena Greco e Arthur Vianna – juntamente com
movimentos sociais - esta rua passou a chamar José Carlos da Matta Machado -
estudante de direito mineiro, militante da Ação Popular Marxista Leninista
(APML), assassinado sob tortura pela ditadura militar em 1973. Na década de
1960, Dan Mitrione estava a serviço da USAID (Agência dos Estados Unidos para o
Desenvolvimento Internacional). Sua função precípua era ensinar como reprimir
eficazmente, com concentração em técnicas de tortura, que ele considerava uma
ciência. A PMMG foi treinada por ele. Suas cobaias eram mendigos, presos ditos comuns e presos políticos. Atuou também
no Rio e em São Paulo. No final dos anos 1960 o maestro de la tortura, como passou a ser chamado, foi para o
Uruguai onde teve o fim merecido: foi capturado e justiçado pelos Tupamaros, em
1970. Ele é retratado na personagem de Yves Montand do filme Estado de sítio de Costa – Gavras (1972).
Há uma cena que o mostra dando aula prática de tortura, com uma enorme bandeira
do Brasil ao fundo. O filme evidentemente foi censurado no Brasil da ditadura.
Voltando ao Arara:
os militares que ministraram o intensivão
de três meses para a turma da GRIN
são multiplicadores dos ensinamentos do maestro de la tortura. Trata-se de projeto institucionalizado, com
cadeia de comando e anuência dos governos estadual e federal. Resta nomeá-los e
responsabilizá-los todos: quem ministrou, quem ordenou, quem permitiu. O
governador Israel Pinheiro, seu secretário de educação (???) José Maria Alkmin
(tio-avô de Geraldo Alkmin/PSDB), o cap. PM Manuel Pinheiro, o ten. cel. Costa
Cavalcanti (signatário do AI-5) são algumas as autoridades que se mostravam esfuziantes no desfile de formatura da GRIN. A militarização da questão
indígena foi levada ao paroxismo em todo o país, com destaque para Minas Gerais.
O relatório final da CNV apresenta exíguas 35 páginas sobre a questão indígena, que segue sendo
tratada como tabu. Os documentos revelados não foram incorporados ao texto. Não
se abriu linha alguma de investigação apesar da prodigalidade de provas e
evidências. Estas 35 páginas quase não passam de um lacônico “há mortos e feridos”, como observa
Marcelo Zelic.
O quadro atual continua devastador, como
sabemos: o governo golpista Michel Temer (MDB/PSDB/Progressistas e outros) tem
exacerbado a iniquidade. Seu ministro da agricultura é ninguém menos que o
latifundiário, dito rei da soja,
Blairo Maggi (Progressistas). Aprofunda-se a militarização de todas as instâncias
do governo, inclusive da FUNAI. Osmar Serraglio (Progressistas) – que foi também
Ministro da Justiça e Segurança Pública deste governo espúrio - é o relator da
PEC 215/2000 cujo objetivo é garantir ao legislativo, dominado pelas bancadas
Boi/Bala/Bíblia/Jaula, a prerrogativa de decidir sobre a demarcação de terras
indígenas e quilombolas, ou seja, absolutizar a espoliação. Há também a questão
do marco temporal, dispositivo fabricado para promover o esbulho total das
terras indígenas ancestrais, os tekohas
– para os Povos Originários o lugar onde
se é, sem o qual/longe do qual não há vida possível. Existem hoje pelo
menos 189 iniciativas no congresso contra os direitos dos Povos Indígenas.
Somos ainda submetidas/os às mais infames declarações racistas, de Bolsonaro
(PSL), do gen. Hamilton Mourão, seu vice, e demais sequazes – neoconservadores/fascistas
entusiastas da ditadura, fãs do torturador-mor Brilhante Ustra, inimigos das
lutas da classe trabalhadora, inimigos do Povo Negro e dos Povos Indígenas, dos
movimentos feministas e LGBTQIs, inimigos da cultura e da diversidade. Há ainda
processo de destruição igualmente criminoso da história, dos saberes, línguas e
conhecimentos dos Povos Indígenas. São tão ameaçados de extinção quanto a
sobrevivência física deles: trata-se de etnocídio e epistemicídio sistêmicos.
Felizmente,
no entanto, a dialética joga a nosso favor: se são mais de 500 anos de
opressão, são também mais de 500 anos de resistência. A batalha é árdua,
contínua, diária, sangrenta – é assim que a permanente mobilização dos Povos
Indígenas tem combatido os diversos ataques sofridos ao longo de mais de cinco
séculos.
3) SERRA VERDE (Luciene
Araújo)
Em
setembro de 2012, após décadas trancafiados, 165 homens e mulheres começam a deixar
o último hospício da grande BH, a Clínica
Serra Verde (Vespasiano/MG). Desfaçatez dupla da direção do hospício:
chamar campo de concentração de clínica e responsabilizar os baixos valores que
seriam repassados pelo SUS pela degradação de tal masmorra.
Tema
relevante sobretudo agora quando assistimos a processo galopante de
remanicomialização perpetrado pelo Ministério da Saúde, quase sempre na calada
da noite. O projeto do governo federal é o resgate de hospícios e o reforço das
comunidades terapêuticas, os quais estão na centralidade do financiamento
público.
Higienismo/eugenismo/estereotipismo/periculosidade
e loucura para criminalizar, estigmatizar,
controlar e confinar as eternas classes perigosas, classes torturáveis: estas
últimas novidades do século XIX (Cesare Lombroso, Gobineau et caterva) constituem o paradigma da política para a saúde mental
do governo federal. Leia-se: legitimação
do confinamento e controle das/os não-hegemônicas/os.
O espectro dos manicômios nos ronda e vem
acompanhado dos cifrões públicos –
denuncia a Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA).
Lembremos que data de 1990 a implementação dos primeiros serviços substitutivos,
conquista da luta pela Reforma Psiquiátrica Antimanicomial.
O desmonte
das leis antimanicomiais (Lei 11 802/ 1995 e Lei 10 216/2001), da política de
redução de danos e das políticas públicas
constitui mais uma ofensiva reacionária e demofóbica do governo Temer.
Trata-se de tentativa de aniquilar projetos construídos pela combatividade das/os
usuárias/os e das/os trabalhadoras/es em saúde mental ao longo de 40 anos
Franco
Basaglia, a grande referência da luta antimanicomial, esteve em Belo Horizonte
em 1978-1979. Ele escancarou para o Brasil e para o mundo a denúncia do campo
de concentração/casa de torturas de Barbacena reforçando a luta iniciada pelos
trabalhadores em saúde mental. Segundo ele, não se humanizam instituições totais - elas precisam ser destruídas: deve
ser permanente a nossa “luta contra a violência e a exclusão, que estão na base
de todas as relações em nossa sociedade”.
É emblemática a sua sustentação da necessidade da luta pela desinstitucionalização
em todas as esferas ao afirmar que “o
que caracteriza as instituições é a nítida divisão entre os que têm poder e os
que não têm” – é a “relação de opressão e violência entre poder e não poder”
que tem que ser permanentemente desconstruída.
4)
VÍDEO-CARTA (Priscila Musa)
Belo documentário que
funciona como coda dos filmes desta
mostra, por isto o deixamos para o final: aborda todos os temas colocados
anteriormente. Coda significa seção conclusiva de uma composição
musical/arremate. Usamos o termo musical porque foi esta a sensação que o
filme nos passou.
Vejamos,
então, fragmentos do seu conteúdo, por ordem de entrada:
- Operação Condor / terrorismo de Estado /
Internacional da repressão: Brasil-Uruguai (onde Dan Mitrione foi justiçado
pelos Tupamaros em 1970)- Argentina / Escola de Mecânica da Armada (ESMA) / Rio
da Prata (mortalha de milhares dos 30 mil desaparecidos
políticos argentinos).
- Os lugares de
memória e direitos humanos no Uruguai e na Argentina.
- 2013 - Casarão da Rua Manaus, Santa Efigênia-BH (Ocupação
Espaço Comum Luíz Estrela) – Evocação das belas jornadas de julho/2013, o
Casarão é também lugar de memória
ressignificado sem perda da sua dimensão trágica. Trata-se do Complexo
arquitetônico da Psiquiatria da Infância e Adolescência da Fundação Hospitalar
de Minas Gerais. Instituição total cercada por instituições totais: Batalhão da
PM (centro de tortura durante a ditadura), hospital militar, Igreja: o entorno
constitui um cadinho do aparato repressivo e do aparato ideológico do Estado. Os
grafismos das crianças internadas ficam a denunciar a arquitetura do claustro e
do horror.
- Vício de origem de BH: cidade planejada sob o signo
da eugenia, do higienismo, da quadriculação, da opressão, do controle pan-óptico.
- A
perfeita concepção de memória dos Povos Indígenas: não o que se guarda, mas o
que se transmite – é preciso contar a história. Não podemos perder a batalha da
construção da narrativa contra hegemônica. Precisamos tecer permanentemente a contra
memória e o contra discurso.
- A bela homenagem às Madres de Plaza de Mayo / La
Ronda de Las Madres: nas suas consignas, a luta contra o terrorismo de
Estado se soma à luta contra o terrorismo do capital num tributo a seus entes
queridos mortos e desaparecidos pela
ditadura argentina (1976-1983):
O
CAPITALISMO FINANCEIRO É TERRORISTA!
Desfecho
de Vídeo-Carta: possibilidade de evasão da opressão/ passagem/resgate - o
respiradouro penosamente aberto no Casarão da Rua Manaus remete à passagem no muro
do hospício usada para comunicação com o exterior/com a vida, mostrada por
Valéria em Serra Verde.
A título de conclusão:
Cidade
em Movimento / Cidade e Memória / Memória em Movimento:
valem todas as variações. Resgatar a Cidade enquanto memória organizada da
sociedade demanda o exercício permanente da perplexidade, da indignação, da
negação resoluta. Demanda luta contínua contra a estratégia do esquecimento. Não queremos a cidade construída pelo inimigo a que se refere Jacques Rancière (citação
final do Vídeo-Carta). Queremos aquela
Cidade prevista por Carlos Drummond
de Andrade: uma cidade sem portas, de
casa sem armadilhas (...) uma terra sem bandeiras, sem igrejas nem quartéis
(...) um jeito só de viver, mas nesse jeito a variedade, a multiplicidade toda
que há dentro de cada um...
Nestes
tempos sombrios, vamos concluir com um trecho da Carta a um poeta suicida, poema de Maiakovski (também ele suicida):
Por
enquanto há escória de sobra.
O
tempo é curto, mãos a obra.
É
preciso transformar a vida
Para
cantá-la em seguida.
PELO
FIM DO GENOCÍDIO DOS POVOS ORIGINÁRIOS!
PELO
DESMANTELAMENTO DO APARATO REPRESSIVO!
POR
UMA SOCIEDADE SEM PRISÕES E SEM MANICÔMIOS!
10 de setembro de 2018
Instituto
Helena Greco de direitos Humanos e Cidadania
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