O
Dia Internacional dos Direitos Humanos é marcado por luto e luta: o Estado
brasileiro segue mantendo sua tradição histórica como um dos maiores violadores
dos Direitos Humanos do mundo. O Brasil tem a segunda maior população negra e
mais de 350 anos de escravidão no prontuário. É o país do racismo estrutural,
do genocídio institucional do Povo Negro e dos Povos Indígenas, do
encarceramento em massa. Tem a terceira maior população carcerária. Tem um dos
maiores índices de concentração de renda e desigualdade social. Tem a polícia
mais violenta e mais letal do planeta. É o campeão mundial em transfeminicídio
e violência contra LGBTQIA+. Ocupa a
quinta posição em casos de estupro, feminicídio e violência doméstica, que têm
aumentado exponencialmente nestes tempos de pandemia. É campeão em destruição
do ecossistema e em esbulho dos territórios indígenas e quilombolas. É um dos
campeões em crimes do latifúndio. É vice-campeão em mortes e contaminação pela
COVID-19, que atinge sobretudo a população negra, indígena e pobre.
A tortura, os desaparecimentos forçados,
as execuções sumárias, o negacionismo histórico, a fabricação do esquecimento –
legados da ditadura militar (1964-1985) – permanecem como sólidas instituições
por aqui. Na próxima segunda-feira, dia 14/12, completam-se 10 anos da condenação
do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos por estes
crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura: torturas, mortes e desaparecimentos dos militantes da
Guerrilha do Araguaia (1972-1974). A sentença determina o esclarecimento das circunstâncias
destes crimes e sua publicização; a responsabilização judicial dos culpados; a
abertura irrestrita dos arquivos da repressão; a localização e devolução dos
restos mortais das/os guerrilheiras/os aos familiares; o resgate da memória e a
reparação histórica. Ao longo de 10 anos o Estado brasileiro tem se recusado
terminantemente a cumprir estas determinações. Agora, então, quando opera no modo fascismo,
isto parece mais distante do que nunca.
Estes dois anos de governo Bolsonaro/Mourão/Guedes
têm levado ao paroxismo todas estas graves violações dos Direitos Humanos
arroladas nos dois primeiros parágrafos, adotando-as como política de Estado.
Os componentes do projeto de poder bolsonarista são a militarização sistêmica, o
fundamentalismo evangélico, o conservadorismo, o neoliberalismo – a extrema
direita. Torturadores contumazes e milicianos genocidas são seus paradigmas.
A polícia mais violenta do mundo – que mata
preta/o e pobre todo dia – é a manifestação mais imediata do racismo estrutural
e do genocídio institucional vigentes. Estes são sustentados por dispositivos
fascistas do aparato repressivo/jurídico/legislativo tais como o pacote anticrime de Sérgio Moro e o excludente de ilicitude (leia-se direito de matar) para as polícias e as
forças armadas. E ainda: a draconiana Lei de Segurança Nacional (da época da
ditadura), a lei do crime organizado e a lei antiterrorismo, que criminalizam
manifestações e movimentos sociais.
Crianças
e adolescentes das favelas e periferias constituem agora o alvo principal da
política de extermínio daí advinda. Só no Rio de Janeiro, 12 crianças negras foram
executadas neste ano: Anna Carolina de Souza Neves, Douglas Enzo, Ítalo
Augusto, João Pedro, Emily Vitória, Rebeca Beatriz, Kauã Vitor da Silva,
Leônidas Augusto, Luiz Antônio de Souza, Maria Alice Neves, Rayane Lopes, João
Vitor Moreira.
Denúncias de execuções, torturas e maus
tratos se multiplicam em todo o Brasil. No massacre de Paraisópolis (São Paulo/SP)
há um ano, nove adolescentes negros foram mortos e dezenas feridos pela polícia.
Até agora não houve qualquer tipo de reparação para vítimas e familiares. Nenhum
policial foi responsabilizado. No dia 08/12, em Porto Alegre/RS, na Vila Grande
Cruzeiro, a ativista dos movimentos negro, feminista e dos Direitos Humanos
Jane Beatriz de Souza Nunes foi assassinada em abordagem truculenta e ilegal da
1ª Brigada Militar, que tentava invadir a sua casa. Toda a comunidade está
mobilizada em protesto. No Rio Grande do Sul, só no primeiro semestre de 2020
foram 90 as mortes por policiais. Em Belo Horizonte/MG houve também
significativo aumento da violência policial: no dia 07/12 duas meninas (11 e 16
anos) – que felizmente sobreviveram - foram baleadas pela Policia Militar na
Vila Mariquinhas, região de Venda Nova. No dia 07/12 duas jovens (17 e 22 anos)
foram feridas pelas famigeradas balas
perdidas no Aglomerado da Serra. Em todos os fins de semana há notícias de
vítimas da polícia nas vilas e favelas. O desmantelamento do aparato repressivo,
assim, é elemento essencial da luta Antirracista.
O
assassinato de Beto Freitas (40 anos) por seguranças do Carrefour em Porto
Alegre/RS desvelou mais uma vez, ao vivo e em cores, o racismo estrutural contido
na consubstancialidade entre terrorismo de Estado e terrorismo do capital. Revelou
também a promiscuidade e organicidade entre segurança pública e segurança
privada. As empresas de segurança privada têm geralmente como proprietários policiais
e/ou militares, que constituem também a maioria dos seus quadros. São treinadas
pela Polícia Militar e monitoradas pela Polícia Federal. Um dos executores de
Beto Freitas é policial temporário,
outra ilegalidade flagrante. O fato de ter acontecido em pleno Dia Nacional da
Consciência Negra (20/11) acabou conferindo destaque a uma prática sistemática
corriqueira e protocolar – banalizada ao extremo no país. Desvelou ainda o
processo crescente de fascistização da sociedade: Beto Freitas foi executado
publicamente sob tortura em área social bastante movimentada de uma das maiores
transnacionais que atuam no país. Funcionários da empresa participaram
diretamente do crime. Houve plateia a favor e indiferente. Foram feitas gravações,
transmitidas em tempo real nas chamadas redes sociais. Algo muito semelhante à
execução de George Floyd nos Estados Unidos, em maio deste ano. No dia 07/12, o
jovem negro Alex Junior Alves de Souza (28 anos) foi agredido verbalmente e
violentamente espancado pelo dono e seguranças do supermercado Guaicuí, em
Várzea das Palmas/MG, acusado indevidamente de roubo.
No
dia 08/12, completaram-se 1000 dias da execução sumária de Marielle Franco e
Anderson Gomes. Até hoje o processo se
arrasta sem desfecho. Além do racismo estrutural, aí fica
escancarada a peculiaridade mais abjeta do governo bolsonarista: a presença
orgânica das milícias no Palácio do Planalto. O miliciano escritório do
crime atua ao lado do gabinete
do ódio. Ambos estão muito bem
instalados no centro do poder. O crime organizado, a mentira organizada e a militarização
sistêmica se retroalimentam. O governo é miliciano.
A necropolítica neoliberal completa este
quadro aterrador ao agravar a destruição que do que restou das conquistas de
décadas de luta da classe trabalhadora e dos movimentos sociais. Trata-se agora
do aniquilamento definitivo dos direitos trabalhistas, das políticas públicas
de previdência social, saúde, educação, moradia, saneamento básico, segurança
alimentar, seguridade social. O sucateamento do SUS é uma das medidas mais
deletérias. Tudo é transformado em commodities
para atender aos desígnios do mercado total, cujo maior beneficiário é o
capital financeiro. De novo, os mais atingidos são as/os negras/os, indígenas e
pobres. A luta Antirracista é necessariamente Anticapitalista.
Na perspectiva da mercantilização
desenfreada, em parceria com donos de hospitais psiquiátricos privados (leia-se
manicômios) - organizados na Associação Brasileira de Psiquiatria, no Conselho
Federal de Medicina e na Associação Brasileira de Medicina - o governo
Bolsonaro quer agora determinar com uma canetada o desmonte sumário e cabal da
Política de Saúde Mental. Esta é baseada na Luta Antimanicomial e
Antiproibicionista. Constitui acúmulo de décadas de luta pelo fim das prisões e
dos manicômios. Tem como princípios os Direitos Humanos, a prática comunitária,
a horizontalidade, o protagonismo das/os usuárias/os e das trabalhadoras/es dos
serviços de Saúde Mental. As/os negras/os - a grande maioria dos usuários –
mais uma vez serão as grandes vítimas desta iminente retomada da lógica do
confinamento, dos choques elétricos, das práticas de contenção, hospitalização
e medicalização. Trata-se de mais uma investida eugenista e genocida do
supermilitarizado Ministério da Saúde bolsonarista, responsável também pelo
massacre provocado pela COVID-19, por negar prevenção e atendimento às
comunidades indígenas e quilombolas, por boicotar as vacinas em andamento, por
retirar a população carcerária das futuras listas de vacinação. A essência de
tudo isto é o racismo estrutural. Fica evidente, portanto, a interface entre
luta Antirracista e luta Antimanicomial.
Neste Dia Internacional dos Direitos
Humanos reafirmamos mais uma vez nossas homenagens a todas as vítimas do
terrorismo de Estado e a todas/os que
combatem o racismo estrutural e o genocídio institucional. Sabemos que estas
são iniquidades constitutivas do sistema capitalista, o qual forjou o
colonialismo, o escravismo, o patriarcalismo, o imperialismo e o
fundamentalismo. Trata-se, portanto, de luta internacionalista
contra-hegemônica e decolonial. É preciso articular Feminismo, direito à Diversidade,
Antirracismo, Antifascismo e Anticapitalismo. É esta a nossa concepção da luta
pelos Direitos Humanos.
Pelo fim do genocídio do Povo Negro e dos
Povos Indígenas!
Pelo fim das execuções, dos desaparecimentos
forçados e da violência policial nos morros, vilas, favelas e ocupações!
Pelo desmantelamento do aparato
repressivo!
Abaixo o terrorismo de Estado e do
capital!
Anna Carolina de Souza Neves, Douglas
Enzo, Ítalo Augusto, João Pedro, Emily Vitória, Rebeca Beatriz, Kauã Vitor da
Silva, Leônidas Augusto, Luiz Antônio de Souza, Maria Alice Neves, Rayane
Lopes, João Vitor Moreira: Presentes, hoje e sempre!
Belo Horizonte, 10 de dezembro de 2020
Instituto Helena Greco de Direitos
Humanos e Cidadania – BH/MG