"Estamos aqui pela Humanidade!" Comuna de Paris, 1871 - "Sejamos realistas, exijamos o impossível." Maio de 68

R. Hermilo Alves, 290, Santa Tereza, CEP: 31010-070 - Belo Horizonte/MG (Ônibus: 9103, 9210 - Metrô: Estação Sta. Efigênia). Contato: institutohelenagreco@gmail.com

Reuniões abertas aos sábados, às 16H - militância desde 2003.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

EIS A NOSSA DENÚNCIA E A NOSSA RESPOSTA ÀS PROVOCAÇÕES DA EXTREMA DIREITA:

¡NO PASARÁN! 
O espaço físico do Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania/IHG, localizado na Rua Hermilo Alves, 290, Bairro Santa Tereza, BH/MG, tem sido alvo de provocações da extrema direita. Seu muro e seu portão foram pichados com dizeres anticomunistas, nazistas, machistas e homofóbicos.

A primeira pichação foi vista pelos membros do IHG no dia 27/01/2014; a segunda pichação foi vista por parceiros no dia 21/04/2014. Ambas foram fotografadas e arquivadas pelos membros do IHG - quem tiver interesse em ver este registro e só comparecer às nossas reuniões abertas (aos sábados, às 16h) ou às reuniões abertas da Frente Independente pela Memória, Verdade e Justiça-MG, que acontecem no mesmo espaço. Não divulgamos as fotos destas pichações na web porque não queremos dar visibilidade a estas iniquidades.

Eis a nossa denúncia e a nossa resposta a estas provocações:

-¡NO PASARÁN! 
- ILS NE PASSERONT PAS! 
- NON PASSERANNO! 
- SIE WERBEN NICHT DURCHKOMMEN! 
- Не пройдут! 
- THEY SHALL NOT PASS!
- NÃO PASSARÃO!
NÃO PASSARÃO: nazistas, fascistas, integralistas, neoliberais, capitalistas, patrões & as direitas!
NÃO PASSARÃO: racistas, machistas, homofóbicos, lesbofóbicos & transfóbicos!
NÃO PASSARÃO: agentes da repressão - torturadores, policiais, militares, p2, defensores da ditadura militar, agentes provocadores & coniventes!
NÃO PASSARÃO: todos aqueles que criminalizam, exploram, oprimem & reprimem a classe trabalhadora, manifestantes & o movimento popular!
ABAIXO A REPRESSÃO!
PELO FIM DO APARATO REPRESSIVO!
PELA EXTINÇÃO DE TODAS AS POLÍCIAS!
INSTITUTO HELENA GRECO
DE DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA - IHG
28 de abril de 2014
Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.




sábado, 26 de abril de 2014

REUNIÃO DA FIMVJ-MG NA SEGUNDA-FEIRA, DIA 28/04/2014, ÀS 18H30

Reunião da Frente Independente 
pela Memória, Verdade e Justiça-MG:
Luta contra a repressão e contra as perseguições políticas aos manifestantes do 7 de setembro!
Segunda-feira, dia 28/04/2014, às 18h30min
Local: IHG - Rua Hermilo Alves, 290, Bairro Santa Tereza - BH/MG
Evento:
https://www.facebook.com/events/1595270634030647/?context=create&ref_dashboard_filter=upcoming&source=49

Abaixo a repressão! Pela liberdade de manifestação e expressão!

- Pelo fim dos processos! Pelo trancamento de todas as ações penais contra os presos políticos do 7 de setembro!

- Pelo fim do aparato repressivo! Pelo fim imediato da Guarda Municipal! Pelo fim imediato da polícia militar, da polícia civil e da Força Nacional de Segurança Pública! Fora Forças Armadas! Fora FIFA!

-Pelo fim da criminalização dos pobres! Pelo fim da criminalização da luta dos estudantes! Pelo fim da criminalização da luta dos trabalhadores da cidade e do campo! Pelo fim da criminalização do movimento popular!

Pela luta independente, realizada pela classe trabalhadora e pelo movimento popular, em relação ao Estado, aos governos, aos patrões e à institucionalidade!

FRENTE INDEPENDENTE PELA MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA-MG

sábado, 5 de abril de 2014

NOTA DE REPÚDIO À VIOLÊNCIA E PRISÃO SOFRIDAS PELOS MILITANTES BIZOCA E BRUNO

Nota de repúdio à violência e prisão 
sofridas pelos militantes Bizoca e Bruno

           O Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania/IHG vem a público manifestar o mais veemente repúdio à violência praticada pela Guarda Municipal de Belo Horizonte e pela Polícia Militar de Minas Gerais contra dois dos seus militantes.  Heloisa Greco (Bizoca) e Bruno A. Soares foram presos e sofreram espancamentos e tortura, no dia 30 de março de 2014, por volta da 19h00, na Praça Duque de Caxias, em Santa Tereza.

 Vamos aos fatos. Bizoca e Bruno tiravam fotos do busto de Duque de Caxias, um dos maiores repressores do século XIX.  Lá estava colado um emblemático flyer (mosquitinho) sobre a manifestação em repúdio ao golpe de 1964 convocada pela Frente Independente pela Memória, Verdade e Justiça-MG, da qual o IHG é membro.

Bruno e Bizoca foram, então, abordados por dois guardas municipais, Jardel Henrique e Itamar Silva.  Ambos empunhavam armas de eletrochoques – chamadas taser - e passaram a ameaçá-los com truculência. Deram imediatamente voz de prisão acusando os dois de “depredação de patrimônio público” (?). Jardel Henrique tinha retirado a identificação, o que é facilitado pelo providencial velcro dos uniformes da Guarda Municipal e da PM. Após vários empurrões, derrubaram Bizoca.  Em seguida, derrubaram Bruno, imobilizaram-no, começaram a chutar e aplicar choques elétricos em todo o seu corpo, por mais de cinco minutos.

Logo depois, chegou um homem a paisana, que também passou a chutar Bruno e Bizoca.  Disse que podia fazer qualquer coisa porque era policial. Havia mais dois indivíduos a paisana agindo de forma truculenta.  Exatamente os três – juntamente com os PMs e os guardas municipais que estavam na ocorrência - foram arrolados como testemunhas contra Bizoca e Bruno.  Trata-se, certamente de P2, policiais infiltrados para monitorar cidadãos, denunciá-los e reforçar a repressão – tão presentes em toda e qualquer manifestação popular.   Os militantes do IHG foram acusados de pichação, desacato, resistência à prisão e agressão física a seus repressores.   Nós, do IHG, desqualificamos totalmente estas acusações.

 Os guardas municipais, então, pressionaram a cabeça de Bruno no asfalto e o algemaram.    Aí, chegaram os policiais militares – mais de uma dezena deles, alguns da tropa de choque, em várias viaturas. Eram chefiados pela Comandante de Policiamento da Capital em pessoa, a Coronel Cláudia Romualdo – a mesmíssima repressora feroz das jornadas de junho de 2013 -, o que potencializou a violência policial.  Bruno foi mantido algemado nas costas, propositalmente de frente para a Igreja de Santa Tereza, em saída de missa. Os policiais disseram que queriam que todos o vissem naquela situação, em mais uma tentativa infame de humilhá-lo.    

Bizoca foi imobilizada com extrema brutalidade pela PM, o que deixou seus dois braços machucados. Foi, literalmente, arremessada no camburão.  Durante toda a agressão houve participação direta da cel. Cláudia.  Bruno foi atirado com a mesma violência em outra viatura, juntamente com um jovem que estava no local.  Este foi preso pelo fato de ter dito que era covardia a ação dos PMs e dos guardas municipais. Não foi o único a se indignar:  pessoas que saíam da Igreja de Santa Tereza e aquelas que estavam na praça – que presenciaram os choques elétricos e as agressões - também disseram que era covardia o que foi feito contra Bruno, que já estava imobilizado, e Bizoca, que tem 62 anos de idade, mede 1,50m e pesa pouco mais de 43 quilos.

  Bizoca, Bruno e o jovem passante foram conduzidos à Central de Flagrantes (Rua Pouso Alegre, Floresta). Durante todo o trajeto foram ameaçados e agredidos verbalmente: os PMs disseram que os detidos tiveram sorte porque a abordagem inicial foi da Guarda Municipal - se tivesse sido deles teriam logo dado pauladas.  

Ao chegar à Central de Flagrantes, Bizoca foi jogada na carceragem da PM, onde já havia três homens presos, o que é absolutamente ilegal. Depois de muito protestar, foi de lá retirada e mantida no espaço dos conduzidos. Bruno e o jovem foram mantidos na carceragem nas seguintes condições: o tempo todo de pé (não há lugar para sentar), sem água, sem luz, no meio da urina que se espalhava no lugar. As pessoas tinham que urinar e defecar no chão de azulejo, uma vez que não há instalações para isso, nem sequer um ralo para escoamento dos dejetos.  São estas as condições das masmorras existentes em Minas e no Brasil. Os celulares de Bruno e Bizoca foram apreendidos e, depois,  inutilizados.  Os dois e o jovem detido com eles só foram ouvidos pelo delegado de plantão e liberados por volta de 04h30min da madrugada do dia seguinte.

 Bruno e Bizoca foram, então, ao Instituto Médico Legal para o exame de corpo de delito: ainda hoje, uma semana depois, Bruno continua mancando e ambos apresentam ferimentos e hematomas causados pelas agressões da Guarda Municipal e da PM.

            Familiares da Bizoca, que chegaram à Central de Flagrantes, foram abordados com truculência por uma policial civil que chegou a dar ordem de prisão a eles, o que evidentemente não se concretizou. Ao longo da noite do dia 30/03 e da madrugada do dia seguinte, amigos e militantes da Frente Independente pela Memória, Verdade e Justiça-MG e de outras entidades compareceram para prestar solidariedade aos militantes presos. Também a Comissão de Direitos Humanos da OAB-MG, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, o Sindicato dos Advogados - MG e a Associação Brasileira de Advogados do Povo/ABRAPO estiveram presentes.  Seus advogados estão assistindo Bizoca, Bruno e o jovem que foi detido com eles.  

O Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania tem recebido manifestações de solidariedade de todo o Brasil.  Bizoca e Bruno denunciaram amplamente as violências sofridas. Além disso, encaminharam denúncia formal às comissões de direitos humanos da Ordem dos Advogados do Brasil/OAB-MG, da Assembléia Legislativa de Minas Gerais e da Câmara Federal. Na próxima semana, a denúncia será encaminhada também à Promotoria de Direitos Humanos do Ministério Público.

            O Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania considera intolerável a violência a que foram submetidos seus militantes, o que aconteceu exatamente às vésperas do cinquentenário do golpe militar de 1964, que submeteu o Brasil a uma ditadura sangrenta.  Fica evidente que a Polícia Militar mantém a mesma prática da época da ditadura.  Atua sistematicamente como um exército no campo de batalha cujo objetivo é eliminar o inimigo.  A Guarda Municipal reproduz esta prática.  Afinal, os guardas municipais são treinados e coordenados pela PM e incorporam o paradigma da violência generalizada contra a população da cidade. 

Choques elétricos constituem método tradicional e institucionalizado de tortura do aparato repressivo.  A guarda municipal aplicou choques elétricos, ou seja, torturou o companheiro Bruno. Antes, os choques elétricos eram aplicados exclusivamente nos porões.  Agora são aplicados também em praça pública, a céu aberto e à vista de todos.

           O Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania reitera o repúdio à violência da PM e da Guarda Municipal.  Responsabilizamos diretamente a comandante de policiamento da capital, coronel Cláudia Romualdo por toda esta violência.  Responsabilizamos também todos os guardas municipais e policiais militares envolvidos nas agressões.  Reafirmamos que lutamos pelo fim da PM, da Guarda Municipal e pelo desmantelamento do aparato repressivo.

            Agradecemos todas as manifestações de apoio e solidariedade que temos recebido dos movimentos e entidades que lutam conosco, ombro a ombro, contra todas as formas de repressão e opressão, contra o aparato repressivo e contra o terror de Estado, que continua a vigorar, agora sob o manto do pessimamente chamado Estado democrático de direito, que não é outra coisa senão o Estado penal.

Abaixo a repressão! Pela liberdade de manifestação e expressão!
Pelo fim imediato da Guarda Municipal e da Polícia Militar! 
Pelo fim de todas as polícias!       


Belo Horizonte, 5 de abril de 2014
Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania



Imagem: Ao centro da foto, o  Guarda Municipal Jardel Henrique sem a sua identificação e, à direita, o Guarda Municipal Itamar Silva. Ambos agrediram e utilizaram as armas de eletrochoque. 
Foto: Bizoca - IHG







sexta-feira, 4 de abril de 2014

REUNIÃO DA FIMVJ-MG, DIA 07/04/2014, ÀS 18H30

Reunião da Frente Independente pela Memória, Verdade e Justiça-MG
Segunda-feira, dia 07/04/2014, às 18h30min
Local: IHG - Rua Hermilo Alves, 290, Bairro Santa Tereza - BH/MG

PAUTA:
1- Avaliação da manifestação em repúdio ao golpe de 1964/viaduto D.Helena Greco (1º de abril de 2014).
2- Distribuição/panfletagem do Informativo da FIMVJ-MG.
3- Finanças- Levantamento das contribuições para cobrir os gastos da manifestação.
4- Denúncia da violência da Guarda Municipal e da Polícia Militar:
-Prisão de dois militantes do IHG e FIMVJ-MG (BH, 30/03/2014);
- Repressão à panfletagem e prisão de cinco companheiros do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção de BH e Região (Sete Lagoas, 31/03/2014).


terça-feira, 1 de abril de 2014

50 anos do Golpe Militar/ 35 anos da Lei de Anistia: a longa marcha da "estratégia do esquecimento" Artigo de membro do IHG / Revista Cadernos de História


50 anos do Golpe Militar/ 35 anos da Lei de Anistia: a longa marcha da
 "estratégia do esquecimento" 

Heloisa Amélia Greco*

 Resumo

 O objetivo deste artigo é analisar a trajetória da construção do esquecimento no Brasil, instituída nos 21 anos de ditadura militar e mantida nos 29 anos do processo de transição política pactuada. O ponto de partida é a luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita. O texto divide-se em três blocos de questões: 1) o caráter da luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita e as contradições da Lei de Anistia Parcial; 2) o papel de três casos recentes na consolidação da construção do esquecimento: o indeferimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 153 – pelo Supremo Tribunal Federal/STF, o tratamento dado pelo Estado à condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos pelos crimes cometidos pela ditadura na repressão à Guerrilha do Araguaia e a criação da Comissão Nacional da Verdade; 3) reatualização da discussão sobre a situação da “estratégia do esquecimento” no chamado Estado Democrático de Direito. Essa estratégia é considerada, aqui, uma das instituições mais sólidas do Brasil, responsável pela manutenção da cultura da impunidade. 

Palavras-chave: Ditadura; Anistia; Esquecimento; Repressão; Justiça; Impunidade.

“Anistia é um ato pelo qual os governos resolvem perdoar generosamente as injustiças e os crimes que eles mesmos cometeram.” 
Aparício Torelliy, o Barão de Itararé. 

“[...] e afora este mudar-se cada dia outra mudança se faz de 
mor espanto que não se muda já como soía.” Camões, Soneto 45.

O objetivo deste artigo é discutir as marcas deixadas pelos 21 longos anos de ditadura militar (1964-1985) e as permanências e rupturas que caracterizam o processo de transição controlada – e ainda sem desfecho – no Brasil. O ponto de partida é a luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, a qual, além de ter exercido papel fundamental no esgotamento do projeto da ditadura militar, contém os principais elementos que constituem, ainda hoje, o núcleo da disputa pela verdade histórica – dramático contencioso da ditadura militar.  

A luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita foi coordenada pelos Comitês Brasileiros de Anistia (CBAs) e empreendida por estes juntamente com o Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), os presos políticos e os banidos e exilados, a partir da segunda metade da década de 1970. Em determinado momento, consegue abarcar toda a oposição organizada e chega a assumir caráter de massa, pelo menos na medida em que isso era possível naquela conjuntura. 

 Serão debatidos três blocos de questões articulados para tratar uma instituição brasileira fortíssima: a “estratégia do esquecimento” – expressão emprestada de Irene Cardoso (1999, p. 137) – adotada como política de Estado. Os três blocos de questões são os seguintes:  

a) o caráter instuinte da luta pela anistia e as contradições da anistia parcial – lei 6.683/1979;

 b) a construção da “estratégia do esquecimento” em três eventos recentes: o indeferimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 153/DF pelo STF em 29 de abril de 2010; o tratamento dado pelo Estado à condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos pelos crimes cometidos pela ditadura militar na repressão à Guerrilha do Araguaia em 24 de novembro de 2010 e a criação da Comissão Nacional da Verdade – Lei 12.528 de 18 de novembro de 2011.

 c) brevíssimas considerações finais sobre a reatualização da discussão em torno do Estado de Segurança Nacional ao Estado Penal. 

O caráter instituinte da luta pela anistia e as contradições da anistia parcial – lei 6.683/1979 

Primeiramente, é preciso desmistificar a história de que a Lei 6.683/1979 – a Lei de Anistia Parcial – é resultado de um acordo ou pacto firmado com o conjunto da sociedade brasileira. Nada mais falso. A Lei 6.683/1979 foi concebida no bojo da chamada “abertura política” do general Figueiredo (1979-1985) e da auto denominada “distensão lenta gradual e segura” (GEISEL, 1974, p. 38) do general Geisel (1974- 1979). O que caracteriza este projeto, a partir das palavras do próprio general, é a imposição de um “generoso consenso” – um “consenso básico para a institucionalização acabada dos princípios da Revolução de 1964” (GEISEL, 1974, p. 38). Esse “generoso consenso” é resultado de um pacto que se deu inter pares já que “a ditadura, por natureza, não convive com a negociação a não ser no interior de seus grupos de apoio” (OLIVEIRA, 1994, p. 55). Trata-se, portanto, de negociação interna, feita nas entranhas da própria ditadura, entre os blocos que participam do poder. Sua contrapartida é o reforço da criminalização daqueles que estão de fora; o aprofundamento da interdição do dissenso; o acirramento da repressão às oposições não institucionais, não consentidas ou não domesticáveis; a demonização do movimento popular. Ainda no vocabulário canhestro do general Geisel, é o “[...] espírito de contestação de minorias trêfegas ou transviadas [...]” (GEISEL, 1974, p. 39) que deveria ser erradicado por mecanismos forjados pela “imaginação política criadora” (GEISEL, 1974, p. 39). Nesse caso, o que prevalece é o tratamento hobbesiano clássico: Pactos sem espadas são meras palavras.1

O desígnio do projeto de distensão/abertura é a institucionalização da ditadura na perspectiva de sua perenização. “Salvaguardas eficazes” (GEISEL, 1974, p. 38) são incorporadas à constituição e à Nova Lei de Segurança Nacional (dezembro de 1978) substituindo – com vantagem, do ponto de vista da governabilidade – a legislação de exceção e potencializando a eficácia dos instrumentos de violência acumulados até então. Não se toca no gigantesco e ubíquo aparato repressivo montado ao longo da ditadura militar, muito menos em seu núcleo duro – a tortura institucionalizada. Longe de mitigar a repressão, o “consenso imposto” incrementa um elemento macabro do terror característico do Estado de Segurança Nacional implantado pela ditadura militar: 

No Brasil, o ano de 1974 se destaca pelo maior número de casos de desaparecimentos de militantes políticos. O que mais chama atenção é que não há nenhum caso de morte reconhecida oficialmente pela repressão. O ditador, general Ernesto Geisel, articulado com a cúpula dos militares, adotou, como estratégia, uma política oficial de que não havia mais a subversão no país. Passou-se a ideia de que a oposição subversiva havia sido finalmente dizimada. Tornou-se obrigatória uma política de distensão. Isto fez com que houvesse mudanças nas formas de ação do aparato repressivo, que passou a atuar em espaços ‘clandestinos’. [...] Construíram dois grupos ultrassecretos – um no CIEx (Centro de Informações do Exército) de Brasília (DF) e outro no DOI-CODI [Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna] de São Paulo. Eles estavam autorizados a assassinar e sumir com os corpos e foram responsáveis pelo desaparecimento de 80 presos políticos entre 1973-1975. (TELES; LISBOA, 2012, p. 56-57). 

A esses 80 desaparecidos políticos mencionados acima, é preciso acrescentar aqueles que foram vítimas do massacre da Guerrilha do Araguaia (1972-1975) – cerca de 70 pessoas – cujo desenlace também se deu no governo Geisel. A abertura do General Figueiredo (1979-1985) dá continuidade à “distensão lenta, gradual e segura”, a partir da lógica de institucionalização da ditadura, sem abrir mão do “potencial de ação repressiva” (GEISEL, 1974, p. 39) necessário à sua preservação.

Figueiredo terá que enfrentar a recuperação das ruas enquanto espaço de exercício da contestação, da cidadania, da política: é o tempo das grandes mobilizações estudantis, das greves de massa que começam no ABCD paulista e abrangem diversas categorias de todo o país, da retomada do movimento popular, sobretudo em torno da luta contra a carestia. É também o tempo da ampliação e radicalização da luta pela anistia. O aparato repressivo, então, efetua um giro na direção desses movimentos organizados. As greves e manifestações são violentamente reprimidas. Em 1979, dezenas de trabalhadores são presos e quatro grevistas são mortos pela Polícia Militar: Benedito Gonçalves, Guido Leão e Orocílio Martins Gonçalves, em Minas Gerais, e Santo Dias, em São Paulo.

Há ainda a novidade sinistra do aumento exponencial da atuação dos grupos parapoliciais e paramilitares (Comando de Caça aos Comunistas/GAC, Movimento Anticomunista/MAC, Comando Delta, Falange Pátria Nova, entre outros), que sempre atuaram e tiveram ligação orgânica com o aparato repressivo da ditadura. De 1977 a 1981, no entanto, há uma escalada de ações terroristas. Em todo o país, ocorrem cerca de cem atentados a bomba assumidos por esses grupos. Só em Belo Horizonte foram 36, meia dúzia dirigidos contra o movimento pela anistia. Os órgãos da imprensa alternativa eram os alvos principais, mas também entidades e militantes mobilizados contra a ditadura são atingidos. A morte de D. Lida Monteiro da Silva no atentado à OAB-RJ (agosto/1980) e o caso Riocentro (abril/1981) são emblemáticos por causa da vítima fatal, no primeiro, e da revelação do envolvimento da linha de comando do Exército, no segundo (GRECO, 2003, p. 45-46). Vê-se, portanto, que o projeto distensão/abertura tem como condição sine qua non a manutenção da repressão desenfreada. 

É na conjuntura de consolidação desse projeto que vai ser concebida, aprovada e promulgada a Lei de Anistia Parcial. Na lógica da distensão/abertura, no entanto, a anistia não foi considerada e, se mencionada, era sumária e furiosamente descartada e/ou contestada. Em 1977-1978, quando a luta pela anistia começa a ganhar amplitude e força a ditadura a colocar a discussão em pauta, acena-se, no máximo, com uma possível revisão de punições caso a caso que contemplaria apenas os setores considerados pela ditadura “confiáveis”, “cooptáveis” e “dialogáveis”. 

A combatividade dos CBAs é que determina a inclusão definitiva do tema na ordem do dia. A luta avança e ganha visibilidade e espaço na chamada “grande imprensa”, sobretudo a escrita. A imprensa alternativa – aliada de primeira hora do movimento pela anistia – potencializa a campanha. A Anistia Ampla, Geral e Irrestrita torna-se, então, incontrastável palavra de ordem nacional. Há, também, ampla repercussão internacional a partir da denúncia sistemática dos crimes da ditadura pelos exilados e banidos, organizados no exterior em comitês de anistia. Só então a ditadura muda seu discurso e passa a enfrentar explicitamente a questão. 

A anistia é representada pela ditadura como a bandeira do perdão, do esquecimento, da reciprocidade, da generosidade, do consenso, do equilíbrio, da reconciliação (GRECO, 2009). A palavra chave do discurso oficial é “revanchismo”. Seria revanchista o conjunto do movimento pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, da esquerda e da oposição em geral – todos que insistissem em colocar em risco a “abertura” ao rejeitar a conciliação nacional generosamente proposta pelo regime. É, assim, instituído um repertório discursivo baseado na lógica do controle e do autoenaltecimento. Esse repertório discursivo sobrevive com saúde à ditadura militar e tem sido utilizado até hoje com a mesma finalidade: tergiversar sobre os crimes cometidos pela ditadura, desqualificar e combater a luta pela verdade e justiça.   

O contradiscurso dos CBAs, por sua vez, é articulado a partir do caráter estrutural e eminentemente instituinte da luta aberta e direta contra o terror do Estado. O repertório discursivo forjado a partir daí institui linguagem própria de direitos humanos, cuja singularidade é a adoção da construção da contramemória e da exigência de verdade e justiça como princípios programáticos. A ditadura é o inimigo a ser combatido e derrubado e não eventual interlocutor com o qual fosse possível estabelecer algum tipo de negociação ou diálogo.

Os trechos a seguir, extraídos da Carta do I Congresso Nacional pela Anistia, realizado em São Paulo, em novembro de 1978, contêm a formulação dos CBAs sobre o significado da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita. Eles sintetizam os principais elementos do contradiscurso dos comitês: 

A anistia pela qual lutamos deve ser Ampla para todas as manifestações de oposição ao regime; Geral – para todas as vítimas da repressão; e Irrestrita – sem discriminações ou restrições. Não aceitamos a anistia parcial e repudiamos a anistia recíproca. Exigimos o fim radical e absoluto das torturas e dos aparatos repressores, e a responsabilização judicial dos agentes da repressão e do regime a que eles servem. (I CONGRESSO NACIONAL PELA ANISTIA, 1978, p. 5).

 Os movimentos pela anistia entendem claramente que não se trata de reformar o poder judiciário, a legislação eleitoral, a LSN. Impõe-se a supressão do aparato repressivo, a desativação dos centros de tortura, oficiais, clandestinos ou militares. Impõe-se a responsabilização dos que, investidos da autoridade conferida pelo poder de polícia, têm praticado torturas e assassinatos; impõe-se acabar com a impunidade dos órgãos paramilitares. (I CONGRESSO NACIONAL PELA ANISTIA, 1978, p. 8).  

Assim, colocam-se como contendoras duas concepções opostas e excludentes:

Anistia como “resgate da memória” e direito à verdade e à justiça: reparação histórica, luta contra o esquecimento e recuperação das lembranças: a Anistia Ampla, Geral e Irrestrita defendida pelo movimento pela anistia – ou ANISTIA ANAMNESE 2 /memória institutinte. Vs. Anistia como esquecimento e pacificação: conciliação nacional, compromisso, concessão, consenso, leia-se certeza da impunidade: a anistia parcial e recíproca, o projeto defendido pela ditadura – ou ANISTIA AMNÈSIA/memória instituída (GRECO, 2003, p. 319 – grifos da autora).  

A antinomia “memória vs. esquecimento” – que passará a ser chamada aqui de anistia anamnese vs. anistia amnésia – se manifesta em toda a sua potencialidade durante a tramitação no Congresso Nacional do Projeto de Anistia Parcial da Ditadura, de junho a agosto de 1979. Os CBAs intensificam a ofensiva e amplificam o espaço político por meio de sua capacidade de ação e da eficácia de seu discurso. São feitas grandes manifestações no Brasil afora: os presos políticos entram em Greve Nacional de Fome pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita; os exilados e banidos se mobilizam no exterior; caravanas do movimento pela anistia se dirigem a Brasília e milhares de manifestantes ocupam o Congresso Nacional. O movimento pela anistia consegue subverter o tacanho ambiente desse parlamento atrelado, transformando-o em espaço de luta política, onde foi travada mais uma dura batalha contra a ditadura. No dia 22 de agosto de 1979, o Projeto de Anistia da Ditadura – agora Lei 6.683/1979, promulgada em 28 de agosto – foi aprovado em bloco pela votação dos líderes dos dois partidos, ARENA e MDB. Houve a discordância silenciosa de 12 dos 26 senadores e a declaração de voto contrário de 29 dos 189 deputados do MDB. Os líderes da oposição na Câmara e no Senado, Freitas Nobre e Paulo Brossard, aprovaram simbolicamente a matéria – não houve votação nominal. Ficam confirmadas, assim, a submissão do poder legislativo à ditadura militar e a subserviência e pusilanimidade consentidas do partido de oposição. Esse resultado representa acordo político cujos consortes são a ditadura e o combalido Congresso Nacional, desfigurado ainda mais pela presença de senadores biônicos. Esse congresso não representava, definitivamente, o conjunto da sociedade brasileira. De resto, é historicamente impossível o poder legislativo ter legitimidade para fazê-lo, mesmo nos quadros de uma democracia representativa. Em se tratando de ditadura, então, tal veleidade configura, no mínimo, contradição de termos. 

O caput da Lei 6.683/1979 e seus dois primeiros parágrafos mostram claramente a que veio o projeto da ditadura: 

Art. 1o – É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos e conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da administração direta e indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos poderes legislativo judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em atos institucionais e complementares. § 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. § 2º – Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal (BRASIL, 1979). 

Aí estão os dois dispositivos reiteradamente combatidos pelo movimento pela anistia: a noção de reciprocidade – tentativa de consolidação da inimputabilidade dos agentes da repressão responsáveis pelas torturas, assassinatos e desaparecimento de presos políticos e a exclusão dos guerrilheiros condenados em processos transitados em julgado. São eles os “terroristas que cometeram crimes de sangue”, no jargão dos militares incorporado pela mídia: aí está o carimbo da Doutrina de Segurança Nacional na figura do imperativo de contenção dos inimigos internos. São os presos políticos, portanto, as principais vítimas da exclusão do projeto da ditadura. A título de compensação, é colocada para eles a possibilidade de indulto que viria gradualmente, a partir da análise caso a caso dos processos existentes no Superior Tribunal Militar. Tudo dependeria da vontade e da magnanimidade do presidente da república.

Os presos políticos repudiam peremptoriamente o Projeto de Anistia da Ditadura e “qualquer tipo de indulto”, o que fica claro nos dois trechos transcritos a seguir, extraídos das declarações de participantes da Greve Nacional de Fome pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita realizada em julho e em agosto de 1979, com a duração de 32 dias. Os documentos foram emitidos respectivamente pelos presos políticos dos presídios Frei Caneca (Rio de Janeiro) e Barro Branco (São Paulo): 

Combatemos essa ditadura com armas nas mãos. A ordem constitucional tinha sido rompida pelas armas, todos os canais de expressão política tinham sido fechados e o país vivia um clima de opressão, terror e censura. Hoje combatemos esse regime na forma de seu projeto de Anistia, com a arma que dispomos: uma GREVE DE FOME, por tempo indeterminado, em repúdio e protesto contra a Anistia Restrita e Parcial da ditadura militar. Entramos em GREVE DE FOME, após muita reflexão, com o pensamento voltado para todos os brasileiros. E particularmente pensando nos nossos companheiros assassinados na câmaras de tortura e que nenhuma anistia – por mais ampla que seja – irá restituir ao nosso convívio e de seus entes queridos. É por isso que afirmamos aqui a não aceitação de qualquer tipo de indulto, reafirmamos nosso compromisso inabalável com a luta pela ANISTIA AMPLA, GERAL E IRRESTRITA; nossa opção pela greve de Fome em repúdio ao atual projeto de anistia e a aceitação serena do risco de nossas próprias vidas. (I CONGRESSO NACIONAL PELA ANISTIA, 1978). 

Procura-se nos atribuir a condição de terroristas, como se e verdadeiro terrorista não fosse o regime que derrubou um governo legalmente constituído, limitou a produção cultural por meio de censura retrógrada, interveio nas entidades sindicais, impôs a política do arrocho salarial, retirando as condições de sobrevivência da classe trabalhadora e empurrando milhões de brasileiros ao abandono e a marginalização; como se os verdadeiros terroristas não fossem aqueles que cassaram, exilaram, prenderam, torturaram e assassinaram quem ousou defender a causa da liberdade. (VIANNA; CIPRIANO, 1992).    

A centralidade de todo esse contencioso está na pretensa reciprocidade da lei de anistia, base de toda a concepção forjada para fabricar o mito da inimputabilidade daqueles que praticaram crimes contra a humanidade. Essa pretensa reciprocidade não está na letra da Lei 6.683/1979, mas tornou-se a interpretação prevalente a partir da confusão deliberada provocada pelo termo “crimes políticos e conexos” embutido no caput e no § 1º de seu primeiro artigo. 

Trata-se de tentativa enviesada de consolidar a autoanistia, a qual se mostra insustentável do ponto de vista histórico e jurídico. Como aponta Hélio Bicudo (2001) não pode haver conexidade em crimes praticados por agentes diferentes, que atinjam bens jurídicos diversos. A mesma lei não pode, ao mesmo tempo, contemplar vítimas e algozes, agentes do Estado e seus opositores. Mesmo assim, a defesa da autoanistia, da “anistia de mão dupla” tem se mostrado inacreditavelmente eficaz e longeva, como será visto na segunda parte deste artigo. 

A Lei 6.683/1979 não garante, sequer, a libertação de todos os presos políticos e a volta de todos os exilados: a maioria dos presos políticos saiu dos cárceres pela comutação de suas penas ou sob liberdade condicional. Havia presos políticos e exilados impedidos de entrar no Brasil ainda em 1981. Assim, todos os princípios programáticos da luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita contidos no trecho da carta do I Congresso Nacional Pela Anistia, citados anteriormente, continuam valendo. Constituem os nós górdios apontados pelo movimento pela anistia, os quais não foram desatados até hoje: a abertura irrestrita dos arquivos da repressão; o esclarecimento circunstanciado das torturas, das mortes e dos desaparecimentos políticos; a nomeação, responsabilização e punição dos torturadores e assassinos de opositores; a erradicação da tortura; o desmantelamento do aparato repressivo e a solução da questão dos mortos e desaparecidos. Para os CBAs, a anistia só mereceria o epíteto de AMPLA, GERAL e IRRESTRITA a partir da consecução desses princípios programáticos e do repúdio à Lei 6.683/1979 – a Lei da Anistia Parcial, Restrita e Recíproca da Ditadura. É emblemática a palavra de ordem cantada pelos militantes do movimento pela anistia ao deixar o Congresso Nacional depois da aprovação da Lei 6.683/1979: “Agora é na rua, a luta continua!”. 

O movimento anuncia a continuidade da luta no terreno que lhe é próprio, o terreno da luta política – as ruas, as praças, a ágora, a cidade – reforçando-se, assim, seu caráter eminentemente instituinte. O confronto anistia anamnese X Anistia amnésia tem pela frente um longo e árduo caminho a percorrer.

 Desdobramentos, nos dias atuais, da construção da “estratégia do esquecimento” 

Passados 50 anos do golpe e 35 da Lei de Anistia Parcial, parece evidente a consolidação da hegemonia da construção do esquecimento, chamada neste artigo de “anistia amnésia”. Tal hegemonia é corolário da Doutrina de Segurança Nacional, o arcabouço ideológico do Estado de Segurança Nacional implantado pela ditadura militar. Essa doutrina foi concebida como um projeto de interdição sistemático e continuado do exercício da política. A sua essência é o terror compreendido no conceito da existência do “inimigo interno” e da necessidade de sua eliminação, sendo considerados inimigos todos aqueles que fazem ou pensam em fazer algum tipo de oposição ao sistema.  

A tortura erigida pela política de Estado e a montagem do gigantesco aparato repressivo para monitorar, conter, reprimir e eliminar “inimigos internos” constituem os instrumentos principais desse projeto. O principal ideólogo da Doutrina de Segurança Nacional, general Golbery do Couto e Silva, é também o principal responsável pela tessitura do projeto de distensão/abertura e, na sequência, da anistia parcial e recíproca.

A Doutrina de Segurança Nacional contamina também a transição política em curso desde o fim da ditadura militar (1985) – mais uma transição sem ruptura tutelada pela hierarquia das Forças Armadas. Ela é protagonizada pelos mesmos atores que articularam o golpe militar visando garantir a modernização conservadora do capitalismo no Brasil: aceleração da acumulação/aprofundamento da exploração/acirramento da repressão.


Ao longo dessa transição política – que já dura 29 anos – a anistia amnésia segue seu curso, agora, no chamado Estado Democrático de Direito, instituído pela Constituição de 1988. Esse fenômeno se enquadra em uma tradição política do ocidente, que remonta à Grécia clássica, detectada por Nicole Loraux na recorrente “[...] propensão democrática para esquecer mesmo o inesquecível.” (LORAUX, 1992, p. 66).

Segundo Cardoso (1999), a longevidade e o caráter continuísta e conservador da transição são dois dos principais fatores a concorrer para a consolidação dessa tendência para “esquecer o inesquecível”. Outro fator importantíssimo nesse processo é o deslocamento operado pela esquerda na direção do pragmatismo, do reformismo, do eleitoralismo, do gabinetismo e da esfera parlamentar (GRECO, 2003). Ao tomar distância das energias utópicas do seu passado guerrilheiro, a esquerda perde sua identidade, se domestica e elege a institucionalidade como seu elemento, seu espaço de atuação.  

Existe um agravante desolador entre os fatores que jogam água no moinho da anistia amnésia, o qual envolve o espaço acadêmico. Trata-se de um tipo de revisionismo presente em certa historiografia – que não é hegemônica, mas não deixa de ser representativa – a qual incorpora a teoria dos dois demônios: direita e esquerda teriam sido igualmente responsáveis pelo golpe e ambas seriam refratárias à democracia. Militares e militantes revolucionários teriam cometido iniquidades durante a ditadura militar, cada qual a seu modo, já que as duas partes pegaram em armas. Fica evidente a desproporção do nivelamento do terror do Estado com a violência revolucionária, como se a guerrilha tivesse prática idêntica à do aparato repressivo montado pela ditadura, que institucionalizou o exercício de torturas, mortes e desaparecimentos. Comete-se uma confusão conceitual que leva à desqualificação do projeto revolucionário da esquerda. Trata-se do reducionismo de considerar a democracia burguesa como único projeto histórico legítimo. As tentativas de testificação da existência do tal pacto social e a culpabilização do conjunto da sociedade pelas mazelas da ditadura estão presentes nessa historiografia revisionista. Alega-se que a ditadura foi apoiada por boa parte da sociedade, mas omite-se que outra boa parte a repudiou e/ou a combateu o tempo todo. Os movimentos sociais e as lutas contra a ditadura estão ausentes nesse tipo de análise: há uma capitulação diante do que Walter Benjamin chama de “história dos vencedores”, aquela que tem como sujeitos exclusivos a institucionalidade e as classes dominantes. Essa concepção certamente tem revigorado a hegemonia da anistia amnésia.

Três eventos recentes revelam, de forma exemplar, como a anistia amnésia tem sobrepujado a luta pela memória, verdade e justiça, chamada aqui de anistia anamnese: o indeferimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 153/DF pelo STF (29 de abril de 2010); o tratamento dado pelo Estado à condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) pelos crimes cometidos pela ditadura na repressão à Guerrilha do Araguaia (24 de novembro de 2010) e; a insuficiente e deficiente Comissão Nacional da Verdade (Lei 12 528 de 18 de novembro de 2011). 

A ADPF 153 foi ajuizada no STF, em outubro de 2008, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), sendo seu objeto a contestação do § 1º do artigo 1º da Lei 6.683/1979. A OAB argui o dispositivo da conexidade da lei de anistia a partir da sua recepção na Constituição de 1988, afirmando que: 

Haveria “controvérsia constitucional” sobre se o referido dispositivo anistiou também os crimes praticados por agentes públicos durante o regime ditatorial de 1964-1985, incluindo, entre outros, crimes como os de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor. Tais crimes foram praticados de modo institucionalizado pelo regime militar contra os seus opositores. (NEDER MEYER, 2012, p. 14).  

 Na sessão do dia 29 de abril de 2010, transmitida ao vivo e em cores para todo o Brasil, o STF declara a improcedência da ADPF 153 e firma a vigência da Lei 6.683/1979 e a constitucionalidade da interpretação do parágrafo 1º de seu artigo 1º. Essa decisão – que não é passível de recursos, tem eficácia erga omnes e efeito vinculante – institucionaliza a reciprocidade, interpretação prevalente e equivocada da lei de anistia. O Estado brasileiro consagra a chamada “anistia de mão dupla”, garantindo inimputabilidade para os agentes do Estado que estupraram, torturaram, mataram e fizeram desaparecer os corpos de opositores.

A transcrição a seguir foi extraída do voto vencedor do relator Eros Grau, acatado por sete dos nove ministros presentes, e trata da transição da ditadura para a democracia. Seu texto está calcado no mesmíssimo repertório discursivo articulado pela ditadura militar, discutido na primeira parte deste artigo. Parece um libelo ao “generoso consenso”:

Há quem se oponha ao fato de a migração da ditadura para a democracia política ter sido uma transição conciliada, suave em razão de certos compromissos. Isso porque foram todos absolvidos, uns absolvendo-se a si mesmos. Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. É inadmissível desprezarmos os que lutaram pela anistia como se o tivessem feito, todos, de modo ilegítimo. Como se tivessem sido cúmplices dos outros. Para como que menosprezá-la, diz-se que o acordo que resultou na anistia foi encetado pela elite política. Mas quem haveria de compor esse acordo, em nome dos subversivos? O que se deseja agora, em uma tentativa, mais do que de reescrever, de reconstruir a História? Que a transição tivesse sido feita, um dia, posteriormente ao momento daquele acordo, com sangue e lágrimas, com violência? (BRASIL, 2010).   

A semântica da concessão, da pacificação, da conciliação, do compromisso e do esquecimento está explicitada, na íntegra, no documento de Eros Grau (73 páginas ao todo). Para ele, a anistia de mão dupla é considerada necessidade histórica e o movimento pela anistia é fruto de acordo político com a sociedade brasileira. Assim sendo, o judiciário não pode modificar a Lei 6.683/1979. De resto, nenhuma mudança seria desejável, pois comprometeria gravemente a “redemocratização” e a “reconciliação nacional” alcançadas por ela. O voto faz o elogio do caráter “de elite” do acordo: é daí que vem sua eficácia. Se o agente do pacto é a “elite política”, os pacientes são “os subversivos”, meros depositários da nobre e desinteressada concessão da anistia: os sujeitos exclusivos da história são as “elites” – o movimento popular não existe. A palavra “subversivo” destaca-se como mais um jargão da ditadura militar empregado com a maior desenvoltura.

O entendimento do significado da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita aí firmado, compreende um deslizamento conceitual grave que tem sido reproduzido pela mídia: o voto do ministro relator confunde essa anistia com a “anistia de mão dupla”. Para desfazer essa incongruência, basta retomar o documento dos CBAs, citado na primeira parte deste artigo: “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita” é a anistia para todas as manifestações de oposição ao regime, sem qualquer restrição; na mesma linha, o movimento repudia com veemência a “anistia recíproca”. Anistia enquanto direito à memória, à verdade e à justiça/anistia anamnese e anistia enquanto impunidade e esquecimento/anistia amnésia são projetos que se excluem mutuamente.  

Outra grande contradição do voto do STF é a que se refere ao caráter automático da anistia concedida para os agentes do Estado que cometeram crimes contra a humanidade. As vítimas da ditadura militar – além de terem sido monitoradas, presas e torturadas – precisaram e precisam empreender longa peregrinação na burocracia estatal para ter reconhecida a sua situação de anistiados. Primeiro, tiveram que recorrer ao Decreto 84.143/1979, que também regulamentou o pedido de retorno ao serviço público ativo, o qual dependia de decisão caso a caso das chamadas autoridades competentes. Só a partir de 2002, a Lei 10.559, que instituiu a Comissão Especial de Anistia na esfera do Ministério da Justiça, passa a regulamentar o regime jurídico do anistiado político (NEDER MEYER, 2012). Tampouco essa lei tem aplicação automática: seu trâmite pode demorar meses ou até anos. Os anistiados devem instruir os processos com vasta documentação, e em caso de aprovação, haverá pedido formal de perdão por parte do Estado brasileiro por meio da Comissão Especial de Anistia, sendo que o resultado tem que ser devidamente publicado no Diário Oficial da União (DOU). Pois bem, os torturadores e assassinos de presos políticos se submeterão a esse processo? Seus nomes serão publicados no DOU? Haverá pedido de perdão em nome do Estado brasileiro? Obviamente que não. A situação deles é especialíssima: a “anistia de mão dupla” que receberam tem caráter automático, instantâneo e total.

O indeferimento da ADPF 153 escancara o reacionarismo histórico do judiciário brasileiro, a sua subserviência em relação ao poder e o seu papel ex oficio de mantenedor das relações de dominação e opressão. Essa decisão distancia o Brasil cada vez mais do Direito Internacional de Proteção dos Direitos Humanos e de suas instâncias de decisão. Em defesa inepta da soberania nacional, os debates e o voto do STF desqualificam até mesmo os tratados assinados pelo país. 

A institucionalização da “anistia de mão dupla” se constitui como tentativa de blindagem do governo brasileiro em duas frentes, a externa e a interna. Na frente interna, para que fosse possível – sem melindrar demais os militares –, daria resposta à pressão dos movimentos de direitos humanos e dos familiares de mortos e desaparecidos para a criação de uma Comissão da Verdade. Na frente externa: pouco mais de duas semanas depois da decisão do STF, o Brasil se apresentaria perante a Corte IDH como réu no processo do Caso Araguaia em que, pela primeira vez, o Estado Brasileiro seria julgado por crimes cometidos pela ditadura militar.

Em agosto de 1995, o Caso Araguaia é apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pelas seguintes entidades: Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e Human Rights Watch /Americas. Trata-se do Caso Gomes Lund e outros (demanda 11552) vs. o Estado brasileiro – o Caso Araguaia.

Os copeticionários são vinte e dois familiares representando vinte e cinco desaparecidos. Em 2000, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos admite o caso e só o encaminha para a Corte IDH em 2009. Em 2010, pela primeira vez, o Estado brasileiro é julgado e condenado por omissão em relação às graves violações dos direitos humanos praticadas no período da ditadura militar: a sentença foi prolatada em 24 de novembro e publicada em 14 de dezembro de 2010. 

Segundo a sentença de 24 de novembro de 2010 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, o objeto da demanda é o seguinte: 

[Apurar] a responsabilidade do Estado brasileiro na detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de setenta pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil [...] e camponeses da região [...], resultado de operações do Exército brasileiro entre 1972 e 1975, no contexto da ditadura militar. (CORTE INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS, 2010).     

No banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos/Corte IDH, o Estado brasileiro tem desempenho, no mínimo, patético. Para começar, quem o representa é o Ministério da Defesa, o qual avisa que o Brasil não cumpriria a sentença se fosse possível. Os juízes da Corte queriam entender porque o Ministro da Defesa não cumpre as determinações referentes ao caso Araguaia e como é permitido a ele desqualificar a própria Corte IDH e os tratados internacionais assinados pelo país. O exministro da Justiça José Gregori – uma das testemunhas arroladas pelo Estado – reproduz a argumentação do voto de Eros Grau no STF para sustentar a irretocabilidade da Lei 6.683/1979. Sepúlveda Pertence, ex-presidente do STF, interpela a Corte IDH, desqualifica o processo e defende apaixonadamente a bilateralidade da lei de anistia. O perito do Estado brasileiro, Gilson Dipp – que hoje é membro da Comissão Nacional da Verdade – fala de maneira extemporânea e descontextualizada sobre a ferramenta jurídica da ADPF e afronta os familiares e peticionários presentes. O representante do Ministério das Relações Exteriores mente em juízo: ele afirma que a Comissão de Busca do Ministério da Defesa, criada em 2009, localizou doze corpos e identificou dois deles. A verdade é que foram os próprios familiares, na década de 1990, que, de forma independente, localizaram e identificaram os restos mortais de Lúcia Petit e Bergson Gurjão – os dois únicos guerrilheiros encontrados até agora.

O testemunho de Maria Amélia de Almeida Teles e Suzana Keniger Lisboa, que acompanharam o julgamento na Corte IDH pela Comissão de Familiares de Mortos e desaparecidos, é representativo do nível de insatisfação dos familiares: 

No plano internacional, a ação ficou por quase uma década e meia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos/CIDH. O Estado brasileiro não mediu esforços para que se arquivasse a ação. Não queria resolver o problema, mas também não queria ser condenado. O Estado brasileiro apostou no esquecimento. [...] No julgamento houve a participação de familiares e de representantes do Estado. Durante a sessão de julgamento, o Ministério da Defesa ameaçou não cumprir a sentença caso ela não fosse exequível. Evidentemente o Estado brasileiro poderia ter adotado uma postura democrática e designar para representá-lo o Itamaraty ou a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Os familiares sentiram-se com “inimigos da pátria”, durante as sessões do julgamento. Aliás, a atitude de ostentação representada pelo Ministério da defesa constrangeu a todos do plenário e aos integrantes da Corte. (ALMEIDA; LISBOA, 2012, p. 61).  

 É esse o início do desenlace de uma peleja que vem se arrastando desde 1982, quando os 22 familiares de 25 desaparecidos políticos iniciaram uma ação judicial de natureza civil contra o Estado perante a Primeira vara Federal do Distrito Federal (Ação Ordinária nº 82.00.24682-5). A demanda dos familiares era a mesma: encontrar os restos mortais dos seus entes queridos.

A União também é condenada nesse processo: a sentença transitou em julgado em 2007 e, simplesmente, o Estado brasileiro tem se recusado a executá-la. A causa chega à Corte Interamericana de Direitos Humanos graças, mais uma vez, à combatividade e persistência dos familiares dos mortos e desaparecidos políticos. Ambas as sentenças – a interna e a internacional – têm sido mantidas na mais absoluta invisibilidade por parte do governo e da grande mídia, da mesma forma que o seu objeto o fora durante a ditadura militar, que mobilizou três desmesuradas campanhas envolvendo cerca de 20 mil militares das três forças para massacrar menos de 70 guerrilheiros e, depois, buscou “[...] extirpar da história não só a memória, mas o próprio acontecimento, transformando-o em ‘desacontecimento’.” (GRECO, 2003, p. 117). As Forças Armadas continuam a negar a existência de arquivos – alegam que eles foram destruídos com base no Decreto 79.099/1977 – e estão determinadas, com o respaldo do governo, a não se manifestar oficialmente sobre a Guerrilha do Araguaia. 

A execução da sentença internacional é monitorada pela Corte IDH – o Brasil teria até 14 de dezembro de 2011 para encaminhar seu cumprimento inicial. Suas determinações mais importantes estão resumidas a seguir:

 a) O Estado brasileiro deve remover todos os obstáculos práticos e jurídicos para garantir a responsabilização de todos envolvidos em violações graves de direitos humanos durante a ditadura militar, não só aqueles que participaram do massacre à Guerrilha do Araguaia. A interpretação da lei de anistia firmada pelo STF, que contraria o Direito Internacional, é o principal obstáculo a ser removido;

 b) Quanto à negativa de garantir o direito à verdade devido aos familiares e à sociedade, determinam-se a obrigação de investigar os fatos; a realização de ato público de reconhecimento de sua responsabilidade; a localização e devolução dos corpos dos desaparecidos e a sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia e de todas as violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar;  

c) O Brasil deve ratificar a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas e adotar as medidas necessárias para tipificar esse crime, em conformidade com os parâmetros interamericanos; 

d) O Brasil deve adequar sua legislação sobre o acesso à informação de acordo com o estabelecido no artigo 2 da Convenção Americana;

 e) Há, ainda, a determinação de medidas de reparação aos familiares – que são considerados vítimas tanto quanto seus parentes desaparecidos – que envolvam, além da indenização, atendimento médico e psicológico/psiquiátrico, de forma gratuita, imediata e continuada;

 f) Quanto à criação de uma Comissão da Verdade, a Corte “exorta” – não “determina” – sua implementação, contanto que haja independência, idoneidade e transparência na indicação de seus membros. A Corte faz uma ressalva importante: as atividades dessa Comissão não eximem o Estado da obrigação de estabelecer a verdade e assegurar a responsabilização judicial dos envolvidos em graves violações dos direitos humanos durante a ditadura militar, através de processos judiciais penais. 

Até agora, apenas cinco providências foram tomadas pelo Estado brasileiro: a publicação da sentença no DOU (15/06/2011), praticamente sob sigilo – nem os peticionários e os familiares foram avisados; o projeto Clínicas do Testemunho para assistência psicológica às vítimas da ditadura; a ratificação tardia da Convenção Interamericana sobre Desaparecimentos Forçados (abril/2011) – que ainda não foi sancionada pela presidência da República; a Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, que cria a limitadíssima Comissão Nacional da Verdade e; a Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011, de acesso às informações. Essa medida é um pouco mais substancial, mas não resolve a questão. Os arquivos da repressão, com pouquíssimas exceções, continuam inacessíveis para o conjunto da sociedade. Até novembro de 2011 prevalecia na legislação brasileira de arquivos (Lei 11.111/2005) a figura do “sigilo eterno” para documentos classificados.

Os pontos críticos, a própria essência da sentença, no entanto, permanecem intocados: a questão dos mortos e desaparecidos e a punição dos crimes da ditadura. Documento expedido pelas entidades peticionárias em 14 de dezembro de 2011, um ano depois da publicação da sentença, demonstra a preocupação em relação ao seu cumprimento: 

O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM/RJ) e a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos expressam sua preocupação pela falta de diligência no cumprimento integral da sentença do Caso Araguaia. Transcorrido um ano da publicação da sentença, as entidades representantes das vítimas consideram que há um descumprimento parcial das obrigações de reparação individual destinadas aos familiares das vítimas desaparecidas, cujo prazo vence hoje. A principal preocupação é a subsistência da dívida por verdade e justiça no país. [...] É necessário que se realize concomitantemente o passo seguinte: a realização da verdade judicial, concretizada por meio dos julgamentos individuais. Como explicitado pela Corte Interamericana: “as atividades e informações que, eventualmente, recolha [a Comissão de Verdade], não substituem a obrigação do Estado de estabelecer a verdade e assegurar a determinação judicial de responsabilidades individuais, através dos processos judiciais penais.” (CEJIL, 2011 – grifo nosso).   

Vê-se, portanto, que o Estado brasileiro tem confrontado abertamente os princípios internacionais dos direitos humanos, a sentença da Corte IDH e a própria Corte – reconhecida pelo país desde 1998, seis anos depois da adesão ao Pacto de San José da Costa Rica/Convenção Interamericana de Direitos Humanos. O Estado tem confrontado, sobretudo, os familiares dos mortos e desaparecidos.

Mesmo assim, depois da condenação pioneira do Estado brasileiro no Caso Araguaia, o Brasil foi denunciado mais duas vezes à Comissão Interamericana de Direitos Humanos por questões referentes à ditadura militar. O caso Wladimir Herzog – assassinado sob tortura no DOI-CODI do II Exército/SP, em 1975 – foi aberto oficialmente na Comissão em março de 2012. Em junho de 2013, o Brasil foi notificado, pela comissão, pelo caso Luiz Roberto José da Costa – militante da Ação libertadora Nacional (ALN), desaparecido em 1973, também assassinado sob tortura no DOI-CODI/SP. O mérito dessas iniciativas é todo dos familiares dos mortos e desaparecidos e dos movimentos que mantêm ativa a luta por memória, verdade e justiça. 

O terceiro evento a ser analisado neste artigo, que revela a tendência de controle da memória pelo Estado, é a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Aqui não será feito inventário da atuação da comissão, será abordada apenas a disputa memória x esquecimento no processo de sua concepção, criação e instalação. O Poder Executivo apresenta à Câmara dos Deputados, em 20 de maio de 2010, o Projeto de Lei 7.376, no mesmíssimo dia da audiência pública sobre o Caso Araguaia na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que é a ocasião de maior visibilidade do processo. Logo depois, portanto, da fatídica decisão do STF de institucionalizar a “anistia de mão dupla”. Essa coincidência de datas certamente não é fortuita: os três eventos se articulam politicamente na consolidação da “estratégia do esquecimento”.

É preciso não perder de vista que é a luta dos familiares e dos setores mais combativos do movimento de direitos humanos que garante a colocação na ordem do dia da proposta de criação de uma Comissão da Verdade e Justiça. Isso se dá a partir de sua atuação na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em 2008, em Brasília, no espaço do Congresso Nacional, sob a coordenação da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR), da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) e do Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos (FENDH). As resoluções aprovadas dão origem ao III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3). Os movimentos e os familiares fazem aprovar na plenária final da conferência (08/12/2008) a criação de uma Comissão Nacional da Verdade e Justiça, conforme o documento Resoluções Aprovadas na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos – Democracia, Desenvolvimento e Direitos Humanos, Superando as Dificuldades, nos seguintes termos: 

Constituir a Comissão Nacional de Verdade e Justiça, composta de forma plural, com maioria de representação dos movimentos socais e com a participação de familiares de mortos e desaparecidos políticos, com caráter público, transparente e prazo determinado para início e término dos trabalhos, com plenos poderes para a apuração dos crimes de lesa humanidade e violação de direitos humanos cometidos durante a articulação para o golpe e a ditadura militar, devendo nominar e encaminhar aos órgãos competentes para punição dos acusados por esses crimes e registrar e divulgar todos os seus procedimentos oficiais, a fim de garantir o esclarecimento circunstanciado de torturas, mortes e desaparecimentos. (BRASIL, 2008).  

Essa formulação começa a ser descaracterizada já na publicação do PNDH3, que se refere apenas a uma Comissão da Verdade, omitindo a palavra “justiça”. O Decreto Federal 7.037, de 21 de dezembro de 2009, declara aprovado o PNDH3, estabelecendo exigência de cumprimento pelos órgãos da administração pública federal. Além da Comissão da Verdade e Justiça, o movimento popular força a introdução de avanços – alguns mais significativos, outros menos – em relação à democratização dos meios de comunicação, à luta contra o latifúndio, aos direitos da comunidade LGBT, à descriminalização do aborto, à laicidade do Estado. 

O PNDH3 passa, então, a ser objeto de ofensiva selvagem dos setores mais reacionários da sociedade, que se sentem ameaçados por esses avanços. São os mesmos setores que articularam o golpe militar, respaldaram a ditadura, financiaram a tortura e encaminharam a transição conservadora: as Forças Armadas, os latifundiários, a grande mídia e a ortodoxia cristã.

A questão que mais polariza é, sem dúvida, a Comissão da Verdade. Com o alarde da reação dos militares, as tergiversações do governo e o acirramento da polarização, o tema ganha espaço na mídia ao longo de 2009. Os militares reproduzem ipsis literis o discurso raivoso e golpista, cujo núcleo é a palavra ‘revanchismo’, em todas as suas variações. O governo Lula capitula frente à exacerbação da insatisfação dos militares e trata de amortecer os pontos polêmicos – todos eles – em nome da governabilidade e da fidelidade às Forças Armadas: em 13 de janeiro de 2010, foi promulgado o decreto 7.177, que descaracteriza totalmente o PNDH3. A partir dele, o PNDH3 não está mais aprovado, mas apenas “tornado público”; retiram-se todos os pontos polêmicos da versão original, um a um. A proposta da Comissão da Verdade é descaracterizada de vez e o direito à verdade é atrelado definitivamente ao imperativo de promoção da “reconciliação nacional”, o eterno mantra da anistia amnésia.   

A Comissão da Verdade entra, definitivamente, na pauta oficial, em dinâmica muito semelhante àquela da anistia parcial descrita na primeira parte deste artigo: não havendo como contorná-la, o governo vai procurar enredá-la, enquadrá-la e instrumentalizá-la.

O longo curso do Projeto de Lei 7.376/2010 – um ano e meio – no Congresso Nacional, é marcado pela ausência de debate público: a discussão se mantém emparedada nos gabinetes dos parlamentares e no aparelho de governo – certamente também na caserna. Movimentos pelos direitos humanos e pelos familiares de mortos e desaparecidos são totalmente alijados do processo. Nem uma sequer de suas emendas é acatada – e muitas foram apresentadas; nenhum de seus pedidos de audiência é atendido. As emendas aprovadas são de autoria do DEM, do PSDB e do PPS. O senador tucano Aloysio Nunes Ferreira, que não é exatamente um simpatizante da causa, foi o relator do projeto. A lei da CNV é reflexo desse processo. 

O projeto só entra em pauta na Câmara dos Deputados – em regime de urgência urgentíssima – no dia 21 de setembro de 2011. Em 18 de novembro de 2011, é aprovada a Lei 12.528 que determina a criação, na esfera da Casa Civil da Presidência da República, da CNV, sendo que, no mesmo dia, é aprovada a Lei 12.527, que trata do acesso às informações. O governo brasileiro precisava mostrar serviço: além da pressão interna dos movimentos que lutam por verdade e justiça, em 14 de dezembro de 2011 se esgotaria o prazo inicial estabelecido pela Corte IDH para o cumprimento da sentença do Caso Araguaia. 

O primeiro artigo da Lei 12.528/2011, a CNV, estabelece o seguinte:

 Art. 1º - É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8 o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional (BRASIL, 2011). 

O caput do art. 1º sintetiza os parâmetros da CNV. Eles estão compreendidos no binômio “verdade e reconciliação nacional” em contraposição à “verdade e justiça”. O termo forte é “reconciliação nacional”. É esse o desígnio da CNV, o qual informa a letra e o espírito da Lei 12.528/2011. O § 4º do art. 4º estabelece que “[...] as atividades da CNV não terão caráter jurisdicional ou persecutório [...]” (BRASIL, 2011) – a CNV não fará justiça. O destino do acervo consolidado por ela será o Arquivo Nacional e pronto (§ único do art. 11º) – nada de divulgação ampla e nada de Ministério Público Federal. O prazo regulamentar de duração da comissão, de meros dois anos (art. 11º), e a abrangência do seu objeto de análise (art.1º) – longos quarenta e dois anos (1946 a 1988) – revelam a intenção de mitigar o foco dos crimes da ditadura militar. O § 2º do art. 4º dispõe que os membros devem manter o sigilo dos documentos e informações classificadas fornecidas à comissão e o art. 5º abre a possibilidade da realização de sessões secretas – a cultura do sigilo tem espaço para prosperar na dinâmica da CNV. O § 1º do art. 7º deixa aberta a possibilidade de participação de militares, o que é considerado inadmissível pelos movimentos, por motivos óbvios. Outro problema é a falta de autonomia, devida ao atrelamento da CNV à Casa Civil da Presidência da República (art. 11º). 

Familiares de mortos e desaparecidos e entidades que lutam por verdade e justiça criticam com veemência a letra e o espírito da lei da CNV. As várias emendas apresentadas por esses setores – e negadas – referem-se exatamente aos dispositivos elencados acima. Em documento datado de 19 de setembro de 2011 – intitulado Mudar o PL 7376 para que a Comissão da Verdade apure os crimes da ditadura com autonomia e sem sigilo – representantes de associações de ex-presos e perseguidos políticos, familiares e grupos de direitos humanos afirmam que “[...] caso esses dispositivos sejam mantidos farão da Comissão Nacional da Verdade uma farsa e um engodo.” (SINDICATO DOS ADVOGADOS DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2011). O documento é assinado por 189 indivíduos e 35 entidades. Nenhuma emenda foi aceita, portanto os dispositivos foram mantidos. 

O conjunto de argumentações forjado na concepção e sustentação da Lei 12.528/2011 reproduz fielmente – muitas vezes literalmente – a taxonomia instituída pela ditadura militar na tessitura do projeto de distensão/abertura da anistia parcial e recíproca: generosidade, conciliação, pacificação, estabilidade, reciprocidade, simetria, consenso, ponderação e seus antípodas: revanchismo, ódio, ressentimento. Trata-se do o repertório discursivo da transição pactuada.

A instalação da Comissão Nacional da Verdade, em 16 de maio de 2012, mobiliza todo esse repertório discursivo, cujo complemento é o tom de otimismo, ufanismo e auto enaltecimento – é esse o registro da fala de Dilma Rousseff. A palavra “celebração” é utilizada várias vezes: todos são competentes e responsáveis, o país conquistou maturidade na democracia, todos estão em festa. É emblemática a chegada da presidente no Palácio do Planalto, ladeada pelos ex-presidentes Lula e Sarney – foto de capa de vários jornais do dia. É o próprio retrato instantâneo do caráter da transição pactuada ainda em curso: estão todos, agora, no mesmo campo. 

Não há voz dissonante alguma. Vera Paiva, filha do desaparecido político Rubens Paiva, havia sido convidada para falar, mas lá mesmo na cerimônia foi desconvidada, para não melindrar os militares – o alto comando das Forças Armadas estava presente. Todos os cinco ex-presidentes vivos também estavam lá e a todos é atribuído protagonismo na luta pela “verdade e conciliação”. Esse tema e o elogio da transição pactuada transversalizam o discurso da presidente. São expressivos os trechos a seguir: 

Ao instalar a Comissão da Verdade não nos move o revanchismo, o ódio ou o desejo de reescrever a história de uma forma diferente do que aconteceu, mas nos move a necessidade imperiosa de conhecê-la em sua plenitude, sem ocultamentos, sem camuflagens, sem vetos e sem proibições [...]. Assim como respeito e reverencio os que lutaram pela democracia enfrentando bravamente a truculência ilegal do Estado, e nunca deixarei de enaltecer esses lutadores e lutadoras, também reconheço e valorizo pactos políticos que nos levaram à redemocratização. (PORTAL DO PLANALTO, 2012 – grifo nosso).    

Ao apresentar os sete membros da CNV – todos eles acadêmicos e/ou juristas – Dilma Roussef afirma: “[...] o país reconhecerá nesse grupo, não tenho dúvidas, brasileiros que se notabilizaram pelo espírito democrático e pela rejeição a confrontos inúteis ou gestos de revanchismo.” (PORTAL DO PLANALTO, 2012). São esses os critérios do governo para a composição dessa comissão, consignados no registro da busca compulsiva do consenso, do realismo político, da rejeição do dissenso e da luta política. Dois membros da CNV, Gilson Dipp – seu primeiro coordenador e porta-voz – e José Carlos Dias, antes mesmo de tomar posse, passam a defender que sejam investigados “os dois lados”, ou seja, a apuração também dos supostos crimes cometidos pela esquerda contra a Ditadura Militar.

Desde que foi anunciada, a CNV tem sido objeto de críticas constantes por parte dos familiares de mortos e desaparecidos políticos e dos movimentos que lutam por verdade e justiça. Em Nota Oficial, de 15 de maio de 2012 – ainda na véspera, portanto, de sua instalação – o comitê paulista Memória, Verdade e Justiça, critica a pretensa imparcialidade da composição da CNV e repudia “declarações preocupantes de alguns de seus membros”: 

O CPMVJ considera que o Sr. Gilson Dipp, ministro do Superior Tribunal de Justiça, não reúne as condições necessárias para integrar a Comissão, por haver atuado como perito do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, tendo atuado contra os familiares dos guerrilheiros do Araguaia cujos corpos encontram-se desaparecidos até a presente data. [...] O CPMVJ estranha e repele declarações de alguns membros da recém-nomeada Comissão Nacional da Verdade que contrariam o elementar sentido de sua criação. Tratando-se de uma Comissão que tem por objetivo a verdade, espanta que a própria verdade de sua criação seja obscurecida por alguns de seus membros. A Comissão instala-se para esclarecer violações de direitos humanos e crimes contra a Humanidade de responsabilidade do Estado brasileiro. Nisto não há “outro lado”. (COMITÊ PAULISTA PELA MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA, 2012).   

A matéria Comissão da verdade rebate críticas de ONGs, publicada no Estadão.com em 13 de agosto de 2012, é enfática:

Em carta aberta à CNV, datada de 22 de outubro de 2012, o Coletivo pela Construção de uma Frente Independente pela Memória, Verdade e Justiça/MG, o qual foi criado no mesmo dia, em Belo Horizonte, rejeita essa comissão. A peculiaridade deste coletivo é o fato de não ter qualquer tipo de vínculo governamental ou institucional. O documento manifesta posição crítica “[...] em relação à concepção que fundamenta encaminhamentos que considerados insatisfatórios, antidemocráticos e equivocados [...]” (FRENTE INDEPENDENTE PELA VERDADE, MEMÓRIA E JUSTICA, 2013), nos seguintes termos: 

Ainda não conquistamos o direito à verdade, à memória e à história, o que passa necessariamente pela construção de uma Comissão de Verdade e Justiça independente e popular. Consideramos inaceitável a Comissão Nacional da Verdade que exclui a Justiça, cuja efetividade foi comprometida desde o Projeto de Lei 7376, de 20 de maio de 2010. A Comissão da Verdade sem Justiça [...] expressa a concepção conservadora do governo, de sua base aliada e do conjunto dos parlamentares. Trata-se de interdição do debate público e de fidelidade ao compromisso imposto pelas forças armadas e pelos empresários que articularam e sustentaram a ditadura militar: a sua essência é constituída pela manutenção da impunidade – ou melhor, da inimputabilidade – dos torturadores e assassinos de opositores e pela consolidação de uma cultura da conciliação. [...] Somente o combate da classe trabalhadora e do movimento popular terá condições de erradicar de vez da herança da ditadura militar. A única maneira de reverter esta situação de barbárie é o fortalecimento da nossa luta com radicalidade, unidade e horizontalidade. (FRENTE INDEPENDENTE PELA VERDADE, MEMÓRIA E JUSTICA, 2013).  

A Carta Aberta à CNV, datada de 15 de junho de 2013 e assinada por 150 familiares de mortos e desaparecidos políticos e 25 movimentos de luta pela verdade e justiça – dentre os quais, 17 Comissões da Verdade setoriais ou locais – critica a “opacidade, falta de unidade e morosidade” e a falta de um plano mínimo de trabalho. A Carta Aberta denuncia a limitação do relatório parcial da CNV, afirmando que este “demonstrou desconhecimento das informações acumuladas, ao longo de mais de 40 anos, pelos envolvidos na luta pelo resgate da memória e da verdade histórica”. As duas principais propostas são as seguintes:

2. Que a CNV intensifique as audiências públicas, devidamente organizadas, convocando agentes do Estado envolvidos nas graves violações aos direitos humanos, bem como as testemunhas - vítimas, familiares, sobreviventes; 3. Que o foco das investigações da CNV seja o esclarecimento dos casos dos mortos e desaparecidos políticos, motivo esse que levou à criação e constituição da CNV (COMITÊ DE MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA DO CEARÁ, 2013).   
 Os três documentos e a matéria citados são representativos da insatisfação dos familiares de presos políticos e dos movimentos que lutam por verdade e justiça quanto aos limites estruturais e políticos da CNV. É preciso reconhecer, no entanto, que o tema se tornou público e as comissões da verdade proliferaram em todo o Brasil. Muitas delas, porém, mesmo mantendo alguma criticidade, se instituem como braço auxiliar da CNV, o que compromete a sua independência. A insuficiência e deficiência dessa comissão a coloca na linha da construção sistemática do esquecimento – a anistia amnésia.

Brevíssimas considerações finais: reatualização da discussão em torno do Estado de Segurança Nacional ao Estado Penal  

A criação da Comissão Nacional da Verdade, articulada com os outros dois eventos tratados neste artigo – o indeferimento da ADPF 153 pelo STF e o tratamento dado à condenação do Brasil pela Corte IDH – demonstram a enorme dificuldade do Estado brasileiro de se haver com as próprias iniquidades. Até hoje, o contencioso da ditadura militar sequer foi equacionado: os princípios programáticos da luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, descritos na primeira parte deste artigo, continuam valendo – todos eles. A cultura da repressão desenfreada, da lógica da suspeição, da impunidade, do sigilo permanece arraigada no aparelho institucional e no aparato repressivo. Mantém-se incólume o projeto de controle da memória e de apropriação da história – a “estratégia do esquecimento” segue sua longa marcha. Como aponta Le Goff (1996):

[...] tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 1996, p. 426). 

O ano do cinquentenário do golpe militar e dos 35 anos da Lei de Anistia continua marcado pela reciclagem nefasta da Doutrina de Segurança Nacional: a tortura se mantém como uma das instituições mais sólidas do país; o aparato repressivo continua operante e tem incrementado os instrumentos de violência acumulados durante a ditadura militar e a destruição do espaço público continua a ser praticada. Os inimigos a serem abatidos são os mesmos de sempre: a luta popular e aqueles 2/3 da população que vivem no limiar da linha de pobreza.

O Estado Democrático de Direito – sucedâneo do Estado de Segurança Nacional – constitui-se em Estado Penal. Este é caracterizado pela guerra generalizada contra os pobres; pelo genocídio institucionalizado de negros e índios e pela política de encarceramento em massa.

A população carcerária do Brasil, a quarta maior do mundo, é de mais de 500 mil pessoas. A Polícia Militar – herança viva e ativa da ditadura – é considerada a mais violenta do mundo. Multiplicam-se as evidências empíricas recentes. As chacinas periódicas adquiriram sistematicidade assustadora. Nos crimes de maio de 2006, em São Paulo, 493 pessoas – em sua maioria jovens e negros de periferia – foram assassinadas pela polícia em duas semanas; ainda em São Paulo, 200 pessoas foram mortas do mesmo modo no mês de junho de 2012. Durante os XV Jogos Panamericanos no Rio, em 27 de junho de 2007, o saldo da maior ocupação conjunta das favelas – 1350 homens da Polícia militar, Polícia Civil e Força Nacional de Segurança – foi o massacre de, pelo menos, 19 moradores do Complexo do Alemão. De maio a junho de 2007, 44 pessoas foram mortas pela polícia no local.

Continua em vigor a Lei de Segurança Nacional, brandida agora contra jovens que participaram das belas jornadas de junho/2013 – durante a Copa das Confederações. Milhões de manifestantes ocuparam as ruas e foram selvagemente reprimidos também pelo conjunto do aparato repressivo – Guarda Municipal, Polícia Civil, Polícia Militar, Força Nacional de Segurança. Além de centenas de feridos e dezenas de presos – que passam a fazer parte do conjunto de “novos presos políticos” – a repressão deixou cerca de duas dezenas de mortos: no Bairro Nova Holanda, no Complexo da Maré, Rio de Janeiro, o Batalhão de Operações Especiais (BOPE) executou sumariamente pelo menos dez pessoas e, só na região metropolitana de Belo Horizonte, mais quatro jovens foram mortos durante as manifestações. 

O caso mais emblemático foi o do pedreiro Amarildo de Souza, torturado e morto na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha, Rio de Janeiro, em 14 de julho de 2013, escancarando o caráter da “pacificação” que se quer adotar como política de Estado no Brasil. O corpo de Amarildo nunca foi encontrado, assim como boa parte dos 493 mortos nos crimes de maio em São Paulo – são os novos “desaparecidos políticos”. É expressiva a palavra de ordem mais cantada pelos manifestantes desde então: “Mataram, mataram, mataram o Amarildo. Cadê, cadê os desaparecidos?”.

A repressão no campo completa o quadro de escalada do terror de Estado. O relatório da Comissão Pastoral da Terra Conflitos no Campo Brasil 2012 aponta crescimento de 24% no número de trabalhadores mortos: 36 em 2012. Existem mais de cem trabalhadores rurais presos. Até abril de 2013, mais nove foram trucidados em conflitos de terra, em nome do latifúndio e do agronegócio.

O que está na base de tudo isto é a “estratégia do esquecimento”, adotada como política de Estado. Esqueceram-se dos crimes da ditadura a partir da interdição da punição dos responsáveis e dos crimes cometidos e banalizados pelo chamado Estado Democrático de Direito em nome do “neoliberalismo” – ele também tributário da Doutrina de Segurança Nacional.

É Francisco de Oliveira que decreta, sem meias palavras, que “[...] a face real [do neoliberalismo brasileiro] é o totalitarismo.” (OLIVEIRA, 1999, p. 81). Segundo ele, está em curso no país um processo de destruição continuada da política baseado na criminalização do dissenso, na “desnecessidade” do público, na destituição da fala e – por mais drástico que pareça – no fim da sociedade. 

A tese 6 sobre o conceito de história de Walter Benjamin conclui este artigo, constituindo trágica exortação à necessidade da luta: 

O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como o salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (BENJAMIN, 1993, p. 223-224). 



50 years since the Military Coup / 35 years of the Amnesty Law: the long journey of the “forgetting strategy” 

Abstract

 This paper analyses the course of the construction of forgetting, the so-called “forgetfulness construction” in Brazil, established in the twenty one years of military dictatorship and sustained in the twenty nine years of the agreedupon political transition. The starting-point is the struggle for general amnesty. Three groups of questions will be discussed: 1) the character of the struggle for general amnesty and the contradictions of the partial amnesty; 2) the role of three recent events in the consolidation of the forgetfulness construction: refusal by the Supreme Court of the ADPF 153; the treatment given by the Brazilian State of the condemnation by the Inter-American Court of Human Rights for the crimes perpetrated by the dictatorship in the repression of the Araguaia Guerrillas, the creation of the National Truth Committee; and 3) the present situation of the forgetfulness strategy. In this paper, the forgetfulness strategy is considered a strong institution, responsible for the sustenance of a culture of impunity. 

Keywords: Dictatorship; Amnesty; Forgetfulness; Repression; Justice; Impunity. 

* Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania. Integrante da Frente Independente pela Memória, Verdade e Justiça de Minas Gerais. 

1 Covenants without the sword are but words – Thomas Hobbes.

2 Anistia anamnese/anistia amnésia – formulação inspirada em Jean Claude Métraux (1998, p. 107).  

REFERÊNCIAS 

I CONGRESSO NACIONAL PELA ANISTIA. Carta do Congresso Nacional pela Anistia: Compromisso com a Anistia, Proposições políticas gerais, Programa mínimo de ação. Resoluções. São Paulo, novembro de 1978. (Fundo Comitê Brasileiro de Anistia/MG – Arquivo particular de Helena Greco). 

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 223-224. 

BICUDO, Hélio. Lei da anistia e crimes conexos. In: TELES, Janaína (Org.). Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade?. São Paulo: Humanitas, 2001. p. 85-88. 

BRASIL. Lei nº 6.683, de 28 de agosto de. 1979. Concede anistia e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 01 nov. 2013. BRASIL. Resoluções Aprovadas na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos – Democracia, Desenvolvimento e Direitos Humanos, Superando as Dificuldades. dez. 2008. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2013. 

BRASIL. Arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 153/DF. 2010. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2013.

 BRASIL. Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011. Cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da casa civil. Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2013. 

CARDOSO, Irene. Há uma herança de 1968 no Brasil? In: GARCIA, Marco. Aurélio; VIEIRA, Maria (Org.). Rebeldes e Contestadores: 1968 Brasil, França e Alemanha. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999, p.135-142. 

CEJIL. Brasil segue sem realizar justiça e verdade. Rio de Janeiro, 14 dez. 2011. Disponível em: . Acesso em: 16 nov. 2013.  

COMITÊ PAULISTA PELA MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA. Comitê paulista questiona membros da Comissão da Verdade. Nota Oficial. São Paulo, 05 maio 2012. Disponível em: . Acesso em: 17 out. 2013. 

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo Brasil 2012. Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2013. 

COMITÊ DE MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA DO CEARÁ. Carta aberta à Comissão Nacional da Verdade. 09 jul. 2013. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2011. 

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil. 24 nov. 2010. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2013.

FRENTE INDEPENDENTE PELA VERDADE, MEMÓRIA E JUSTIÇA. Carta Aberta à Comissão Nacional da Verdade. Belo Horizonte, 15 jun. 2013. Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2013.

GEISEL, Ernesto. Discursos. Brasília: Assessoria de Imprensa e Relações Públicas da Presidência da Republica, 1975. v. 1. 

GRECO, Heloisa Amélia. Dimensões fundacionais da luta pela anistia. 2003. Tese (doutorado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de PósGraduação em História, Belo Horizonte. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2013.  

GRECO, Heloisa Amélia. Memória vs. Esquecimento, Instituinte vs. Instituído: a luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita. In: SILVA, Haike Roselane Kleber (Org.). A luta pela Anistia. São Paulo: Editora UNESP, 2009. 

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Unicamp, 1996, p. 426. 

LORAUX, Nicole. Elogio do Anacronismo. In: NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e história. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda., 1992. 

MÉTRAUX, Jean Claude. Le tampsdechiré. In: CALLOZ-TSCHOPP, Marie-Claire (Ed.). Hannah Arendt, la ‘banalité du mal’ comme mal politique. v.2. Paris: L’Harmattan, 1998. p. 105-197. 

NEDER MEYER, Emilio Peluso. Ditadura e Responsabilização: elementos para uma Justiça de Transição no Brasil. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. 

OLIVEIRA, Eliézer Rizzo. De Geisel a Collor: Forças Armadas, transição e democracia. Campinas: Papirus, 1994.

OLIVEIRA, Francisco. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal. In: OLIVEIRA, Francisco; PAOLI, Maria Célia (Org.). Os sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1999. 

PORTAL do Planalto. Discurso da presidenta da república, Dilma Rousseff, na cerimônia de instalação da comissão da verdade. Palácio do Planalto, Brasília-DF, 16 maio. 2012. Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2013.

 PRESOS políticos do Rio de Janeiro (Frei Caneca). Dos presos políticos em greve de fome ao povo brasileiro. Rio de Janeiro, 22 de jul. 1979. Seguem 14 assinaturas. (Fundo Comitê Brasileiro de Anistia/MG – Arquivo Particular de Helena Greco). 

SINDICATO DOS ADVOGADOS DO ESTADO DE SÃO PAULO. Mudar o PL 7.376 para que a Comissão da Verdade apure os crimes da ditadura com autonomia e sem sigilo. Brasília, 19 set. 2011. Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2013.  

TELES, Maria Amélia de Almeida; LISBOA, Suzana Keniger. A vala de Perus: um marco histórico na busca da verdade e da justiça! In: Vala clandestina de Perus: desaparecidos políticos, um capítulo não encerrado da história brasileira. São Paulo: Instituto Macuco, 2012, p. 51-102. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2013.

TOSTA, Wilson. Comissão da verdade rebate críticas de ONGs. Estado de S. Paulo. São Paulo, 13 ago. 2012. Disponível em: . Acesso em: 19 nov. 2013. 

 VIANNA, Gilney; CIPRIANO, Perly. Presos políticos de São Paulo (Barro Branco). Declaração de greve dos cinco companheiros do Barro Branco. In: VIANNA, Gilney; CIPRIANO, Perly. A fome de liberdade. Vitória-ES: Editora da UFES, 1992. 

Recebido em outubro de 2013. Aprovado em fevereiro de 2014. 

Cadernos de História, Belo Horizonte, v. 15, n. 22, 1º sem. 2014
Dossiê 50 anos do golpe civil-militar no Brasil: