"estratégia do esquecimento"
Heloisa Amélia Greco*
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar a trajetória da construção do esquecimento
no Brasil, instituída nos 21 anos de ditadura militar e mantida nos 29 anos do
processo de transição política pactuada. O ponto de partida é a luta pela
Anistia Ampla, Geral e Irrestrita. O texto divide-se em três blocos de
questões: 1) o caráter da luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita e as
contradições da Lei de Anistia Parcial; 2) o papel de três casos recentes na
consolidação da construção do esquecimento: o indeferimento da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 153 – pelo Supremo
Tribunal Federal/STF, o tratamento dado pelo Estado à condenação do Brasil
na Corte Interamericana de Direitos Humanos pelos crimes cometidos pela
ditadura na repressão à Guerrilha do Araguaia e a criação da Comissão
Nacional da Verdade; 3) reatualização da discussão sobre a situação da
“estratégia do esquecimento” no chamado Estado Democrático de Direito.
Essa estratégia é considerada, aqui, uma das instituições mais sólidas do
Brasil, responsável pela manutenção da cultura da impunidade.
Palavras-chave: Ditadura; Anistia; Esquecimento; Repressão; Justiça;
Impunidade.
“Anistia é um ato pelo qual os governos resolvem
perdoar generosamente as injustiças e os crimes
que eles mesmos cometeram.”
Aparício Torelliy, o Barão de Itararé.
“[...] e afora este mudar-se cada dia
outra mudança se faz de
mor espanto
que não se muda já como soía.” Camões, Soneto 45.
O objetivo deste artigo é discutir as marcas deixadas pelos 21 longos anos de
ditadura militar (1964-1985) e as permanências e rupturas que caracterizam o processo
de transição controlada – e ainda sem desfecho – no Brasil. O ponto de partida é a luta
pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, a qual, além de ter exercido papel fundamental no
esgotamento do projeto da ditadura militar, contém os principais elementos que constituem, ainda hoje, o núcleo da disputa pela verdade histórica – dramático
contencioso da ditadura militar.
A luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita foi coordenada pelos Comitês
Brasileiros de Anistia (CBAs) e empreendida por estes juntamente com o Movimento
Feminino pela Anistia (MFPA), os presos políticos e os banidos e exilados, a partir da
segunda metade da década de 1970. Em determinado momento, consegue abarcar toda a
oposição organizada e chega a assumir caráter de massa, pelo menos na medida em que
isso era possível naquela conjuntura.
Serão debatidos três blocos de questões articulados para tratar uma instituição
brasileira fortíssima: a “estratégia do esquecimento” – expressão emprestada de Irene
Cardoso (1999, p. 137) – adotada como política de Estado. Os três blocos de questões
são os seguintes:
a) o caráter instuinte da luta pela anistia e as contradições da anistia parcial –
lei 6.683/1979;
b) a construção da “estratégia do esquecimento” em três eventos recentes: o
indeferimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental –
ADPF 153/DF pelo STF em 29 de abril de 2010; o tratamento dado pelo
Estado à condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos
Humanos pelos crimes cometidos pela ditadura militar na repressão à
Guerrilha do Araguaia em 24 de novembro de 2010 e a criação da Comissão
Nacional da Verdade – Lei 12.528 de 18 de novembro de 2011.
c) brevíssimas considerações finais sobre a reatualização da discussão em
torno do Estado de Segurança Nacional ao Estado Penal.
O caráter instituinte da luta pela anistia e as contradições da anistia parcial – lei
6.683/1979
Primeiramente, é preciso desmistificar a história de que a Lei 6.683/1979 – a Lei
de Anistia Parcial – é resultado de um acordo ou pacto firmado com o conjunto da
sociedade brasileira. Nada mais falso. A Lei 6.683/1979 foi concebida no bojo da
chamada “abertura política” do general Figueiredo (1979-1985) e da auto denominada
“distensão lenta gradual e segura” (GEISEL, 1974, p. 38) do general Geisel (1974-
1979). O que caracteriza este projeto, a partir das palavras do próprio general, é a imposição de um “generoso consenso” – um “consenso básico para a institucionalização
acabada dos princípios da Revolução de 1964” (GEISEL, 1974, p. 38). Esse “generoso
consenso” é resultado de um pacto que se deu inter pares já que “a ditadura, por
natureza, não convive com a negociação a não ser no interior de seus grupos de apoio”
(OLIVEIRA, 1994, p. 55). Trata-se, portanto, de negociação interna, feita nas entranhas
da própria ditadura, entre os blocos que participam do poder. Sua contrapartida é o
reforço da criminalização daqueles que estão de fora; o aprofundamento da interdição
do dissenso; o acirramento da repressão às oposições não institucionais, não consentidas
ou não domesticáveis; a demonização do movimento popular. Ainda no vocabulário
canhestro do general Geisel, é o “[...] espírito de contestação de minorias trêfegas ou
transviadas [...]” (GEISEL, 1974, p. 39) que deveria ser erradicado por mecanismos
forjados pela “imaginação política criadora” (GEISEL, 1974, p. 39). Nesse caso, o que
prevalece é o tratamento hobbesiano clássico: Pactos sem espadas são meras palavras.1
O desígnio do projeto de distensão/abertura é a institucionalização da ditadura na
perspectiva de sua perenização. “Salvaguardas eficazes” (GEISEL, 1974, p. 38) são
incorporadas à constituição e à Nova Lei de Segurança Nacional (dezembro de 1978)
substituindo – com vantagem, do ponto de vista da governabilidade – a legislação de
exceção e potencializando a eficácia dos instrumentos de violência acumulados até
então. Não se toca no gigantesco e ubíquo aparato repressivo montado ao longo da
ditadura militar, muito menos em seu núcleo duro – a tortura institucionalizada. Longe
de mitigar a repressão, o “consenso imposto” incrementa um elemento macabro do
terror característico do Estado de Segurança Nacional implantado pela ditadura militar:
No Brasil, o ano de 1974 se destaca pelo maior número de casos de
desaparecimentos de militantes políticos. O que mais chama atenção é que
não há nenhum caso de morte reconhecida oficialmente pela repressão. O
ditador, general Ernesto Geisel, articulado com a cúpula dos militares,
adotou, como estratégia, uma política oficial de que não havia mais a
subversão no país. Passou-se a ideia de que a oposição subversiva havia sido
finalmente dizimada. Tornou-se obrigatória uma política de distensão. Isto
fez com que houvesse mudanças nas formas de ação do aparato repressivo,
que passou a atuar em espaços ‘clandestinos’. [...] Construíram dois grupos
ultrassecretos – um no CIEx (Centro de Informações do Exército) de Brasília
(DF) e outro no DOI-CODI [Destacamento de Operações de Informações –
Centro de Operações de Defesa Interna] de São Paulo. Eles estavam
autorizados a assassinar e sumir com os corpos e foram responsáveis pelo
desaparecimento de 80 presos políticos entre 1973-1975. (TELES; LISBOA,
2012, p. 56-57).
A esses 80 desaparecidos políticos mencionados acima, é preciso acrescentar
aqueles que foram vítimas do massacre da Guerrilha do Araguaia (1972-1975) – cerca
de 70 pessoas – cujo desenlace também se deu no governo Geisel. A abertura do
General Figueiredo (1979-1985) dá continuidade à “distensão lenta, gradual e segura”,
a partir da lógica de institucionalização da ditadura, sem abrir mão do “potencial de
ação repressiva” (GEISEL, 1974, p. 39) necessário à sua preservação.
Figueiredo terá que enfrentar a recuperação das ruas enquanto espaço de
exercício da contestação, da cidadania, da política: é o tempo das grandes mobilizações
estudantis, das greves de massa que começam no ABCD paulista e abrangem diversas
categorias de todo o país, da retomada do movimento popular, sobretudo em torno da
luta contra a carestia. É também o tempo da ampliação e radicalização da luta pela
anistia. O aparato repressivo, então, efetua um giro na direção desses movimentos
organizados. As greves e manifestações são violentamente reprimidas. Em 1979,
dezenas de trabalhadores são presos e quatro grevistas são mortos pela Polícia Militar:
Benedito Gonçalves, Guido Leão e Orocílio Martins Gonçalves, em Minas Gerais, e
Santo Dias, em São Paulo.
Há ainda a novidade sinistra do aumento exponencial da atuação dos grupos
parapoliciais e paramilitares (Comando de Caça aos Comunistas/GAC, Movimento
Anticomunista/MAC, Comando Delta, Falange Pátria Nova, entre outros), que sempre
atuaram e tiveram ligação orgânica com o aparato repressivo da ditadura. De 1977 a
1981, no entanto, há uma escalada de ações terroristas. Em todo o país, ocorrem cerca
de cem atentados a bomba assumidos por esses grupos. Só em Belo Horizonte foram
36, meia dúzia dirigidos contra o movimento pela anistia. Os órgãos da imprensa
alternativa eram os alvos principais, mas também entidades e militantes mobilizados
contra a ditadura são atingidos. A morte de D. Lida Monteiro da Silva no atentado à
OAB-RJ (agosto/1980) e o caso Riocentro (abril/1981) são emblemáticos por causa da
vítima fatal, no primeiro, e da revelação do envolvimento da linha de comando do
Exército, no segundo (GRECO, 2003, p. 45-46). Vê-se, portanto, que o projeto
distensão/abertura tem como condição sine qua non a manutenção da repressão
desenfreada.
É na conjuntura de consolidação desse projeto que vai ser concebida, aprovada
e promulgada a Lei de Anistia Parcial. Na lógica da distensão/abertura, no entanto, a
anistia não foi considerada e, se mencionada, era sumária e furiosamente descartada
e/ou contestada. Em 1977-1978, quando a luta pela anistia começa a ganhar amplitude e força a ditadura a colocar a discussão em pauta, acena-se, no máximo, com uma
possível revisão de punições caso a caso que contemplaria apenas os setores
considerados pela ditadura “confiáveis”, “cooptáveis” e “dialogáveis”.
A combatividade dos CBAs é que determina a inclusão definitiva do tema na
ordem do dia. A luta avança e ganha visibilidade e espaço na chamada “grande
imprensa”, sobretudo a escrita. A imprensa alternativa – aliada de primeira hora do
movimento pela anistia – potencializa a campanha. A Anistia Ampla, Geral e Irrestrita
torna-se, então, incontrastável palavra de ordem nacional. Há, também, ampla
repercussão internacional a partir da denúncia sistemática dos crimes da ditadura pelos
exilados e banidos, organizados no exterior em comitês de anistia. Só então a ditadura
muda seu discurso e passa a enfrentar explicitamente a questão.
A anistia é representada pela ditadura como a bandeira do perdão, do
esquecimento, da reciprocidade, da generosidade, do consenso, do equilíbrio, da
reconciliação (GRECO, 2009). A palavra chave do discurso oficial é “revanchismo”.
Seria revanchista o conjunto do movimento pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, da
esquerda e da oposição em geral – todos que insistissem em colocar em risco a
“abertura” ao rejeitar a conciliação nacional generosamente proposta pelo regime. É,
assim, instituído um repertório discursivo baseado na lógica do controle e do
autoenaltecimento. Esse repertório discursivo sobrevive com saúde à ditadura militar e
tem sido utilizado até hoje com a mesma finalidade: tergiversar sobre os crimes
cometidos pela ditadura, desqualificar e combater a luta pela verdade e justiça.
O contradiscurso dos CBAs, por sua vez, é articulado a partir do caráter
estrutural e eminentemente instituinte da luta aberta e direta contra o terror do Estado. O
repertório discursivo forjado a partir daí institui linguagem própria de direitos humanos,
cuja singularidade é a adoção da construção da contramemória e da exigência de
verdade e justiça como princípios programáticos. A ditadura é o inimigo a ser
combatido e derrubado e não eventual interlocutor com o qual fosse possível estabelecer
algum tipo de negociação ou diálogo.
Os trechos a seguir, extraídos da Carta do I Congresso Nacional pela Anistia,
realizado em São Paulo, em novembro de 1978, contêm a formulação dos CBAs sobre o
significado da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita. Eles sintetizam os principais elementos
do contradiscurso dos comitês:
A anistia pela qual lutamos deve ser Ampla para todas as manifestações de
oposição ao regime; Geral – para todas as vítimas da repressão; e Irrestrita –
sem discriminações ou restrições. Não aceitamos a anistia parcial e
repudiamos a anistia recíproca. Exigimos o fim radical e absoluto das torturas
e dos aparatos repressores, e a responsabilização judicial dos agentes da
repressão e do regime a que eles servem. (I CONGRESSO NACIONAL
PELA ANISTIA, 1978, p. 5).
Os movimentos pela anistia entendem claramente que não se trata de
reformar o poder judiciário, a legislação eleitoral, a LSN. Impõe-se a
supressão do aparato repressivo, a desativação dos centros de tortura, oficiais,
clandestinos ou militares. Impõe-se a responsabilização dos que, investidos
da autoridade conferida pelo poder de polícia, têm praticado torturas e
assassinatos; impõe-se acabar com a impunidade dos órgãos paramilitares. (I
CONGRESSO NACIONAL PELA ANISTIA, 1978, p. 8).
Assim, colocam-se como contendoras duas concepções opostas e excludentes:
Anistia como “resgate da memória” e direito à verdade e à justiça: reparação
histórica, luta contra o esquecimento e recuperação das lembranças: a Anistia
Ampla, Geral e Irrestrita defendida pelo movimento pela anistia – ou
ANISTIA ANAMNESE 2
/memória institutinte.
Vs.
Anistia como esquecimento e pacificação: conciliação nacional,
compromisso, concessão, consenso, leia-se certeza da impunidade: a anistia
parcial e recíproca, o projeto defendido pela ditadura – ou ANISTIA
AMNÈSIA/memória instituída (GRECO, 2003, p. 319 – grifos da autora).
A antinomia “memória vs. esquecimento” – que passará a ser chamada aqui de
anistia anamnese vs. anistia amnésia – se manifesta em toda a sua potencialidade
durante a tramitação no Congresso Nacional do Projeto de Anistia Parcial da Ditadura,
de junho a agosto de 1979. Os CBAs intensificam a ofensiva e amplificam o espaço
político por meio de sua capacidade de ação e da eficácia de seu discurso. São feitas
grandes manifestações no Brasil afora: os presos políticos entram em Greve Nacional de
Fome pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita; os exilados e banidos se mobilizam no
exterior; caravanas do movimento pela anistia se dirigem a Brasília e milhares de
manifestantes ocupam o Congresso Nacional. O movimento pela anistia consegue
subverter o tacanho ambiente desse parlamento atrelado, transformando-o em espaço de
luta política, onde foi travada mais uma dura batalha contra a ditadura. No dia 22 de
agosto de 1979, o Projeto de Anistia da Ditadura – agora Lei 6.683/1979, promulgada
em 28 de agosto – foi aprovado em bloco pela votação dos líderes dos dois partidos,
ARENA e MDB. Houve a discordância silenciosa de 12 dos 26 senadores e a
declaração de voto contrário de 29 dos 189 deputados do MDB. Os líderes da oposição na Câmara e no Senado, Freitas Nobre e Paulo Brossard, aprovaram simbolicamente a
matéria – não houve votação nominal. Ficam confirmadas, assim, a submissão do poder
legislativo à ditadura militar e a subserviência e pusilanimidade consentidas do partido
de oposição. Esse resultado representa acordo político cujos consortes são a ditadura e o
combalido Congresso Nacional, desfigurado ainda mais pela presença de senadores
biônicos. Esse congresso não representava, definitivamente, o conjunto da sociedade
brasileira. De resto, é historicamente impossível o poder legislativo ter legitimidade
para fazê-lo, mesmo nos quadros de uma democracia representativa. Em se tratando de
ditadura, então, tal veleidade configura, no mínimo, contradição de termos.
O caput da Lei 6.683/1979 e seus dois primeiros parágrafos mostram claramente
a que veio o projeto da ditadura:
Art. 1o
– É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre
2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos e
conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos
suspensos e aos servidores da administração direta e indireta, de fundações
vinculadas ao poder público, aos servidores dos poderes legislativo
judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos
com fundamento em atos institucionais e complementares.
§ 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer
natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação
política.
§ 2º – Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela
prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal
(BRASIL, 1979).
Aí estão os dois dispositivos reiteradamente combatidos pelo movimento pela
anistia: a noção de reciprocidade – tentativa de consolidação da inimputabilidade dos
agentes da repressão responsáveis pelas torturas, assassinatos e desaparecimento de
presos políticos e a exclusão dos guerrilheiros condenados em processos transitados em
julgado. São eles os “terroristas que cometeram crimes de sangue”, no jargão dos
militares incorporado pela mídia: aí está o carimbo da Doutrina de Segurança Nacional
na figura do imperativo de contenção dos inimigos internos. São os presos políticos,
portanto, as principais vítimas da exclusão do projeto da ditadura. A título de
compensação, é colocada para eles a possibilidade de indulto que viria gradualmente, a
partir da análise caso a caso dos processos existentes no Superior Tribunal Militar. Tudo
dependeria da vontade e da magnanimidade do presidente da república.
Os presos políticos repudiam peremptoriamente o Projeto de Anistia da Ditadura
e “qualquer tipo de indulto”, o que fica claro nos dois trechos transcritos a seguir,
extraídos das declarações de participantes da Greve Nacional de Fome pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita realizada em julho e em agosto de 1979, com a duração de 32
dias. Os documentos foram emitidos respectivamente pelos presos políticos dos
presídios Frei Caneca (Rio de Janeiro) e Barro Branco (São Paulo):
Combatemos essa ditadura com armas nas mãos. A ordem constitucional
tinha sido rompida pelas armas, todos os canais de expressão política tinham
sido fechados e o país vivia um clima de opressão, terror e censura. Hoje
combatemos esse regime na forma de seu projeto de Anistia, com a arma que
dispomos: uma GREVE DE FOME, por tempo indeterminado, em repúdio e
protesto contra a Anistia Restrita e Parcial da ditadura militar. Entramos em
GREVE DE FOME, após muita reflexão, com o pensamento voltado para
todos os brasileiros. E particularmente pensando nos nossos companheiros
assassinados na câmaras de tortura e que nenhuma anistia – por mais ampla
que seja – irá restituir ao nosso convívio e de seus entes queridos. É por isso
que afirmamos aqui a não aceitação de qualquer tipo de indulto, reafirmamos
nosso compromisso inabalável com a luta pela ANISTIA AMPLA, GERAL
E IRRESTRITA; nossa opção pela greve de Fome em repúdio ao atual
projeto de anistia e a aceitação serena do risco de nossas próprias vidas. (I
CONGRESSO NACIONAL PELA ANISTIA, 1978).
Procura-se nos atribuir a condição de terroristas, como se e verdadeiro
terrorista não fosse o regime que derrubou um governo legalmente
constituído, limitou a produção cultural por meio de censura retrógrada,
interveio nas entidades sindicais, impôs a política do arrocho salarial,
retirando as condições de sobrevivência da classe trabalhadora e empurrando
milhões de brasileiros ao abandono e a marginalização; como se os
verdadeiros terroristas não fossem aqueles que cassaram, exilaram,
prenderam, torturaram e assassinaram quem ousou defender a causa da
liberdade. (VIANNA; CIPRIANO, 1992).
A centralidade de todo esse contencioso está na pretensa reciprocidade da lei de
anistia, base de toda a concepção forjada para fabricar o mito da inimputabilidade
daqueles que praticaram crimes contra a humanidade. Essa pretensa reciprocidade não
está na letra da Lei 6.683/1979, mas tornou-se a interpretação prevalente a partir da
confusão deliberada provocada pelo termo “crimes políticos e conexos” embutido no
caput e no § 1º de seu primeiro artigo.
Trata-se de tentativa enviesada de consolidar a autoanistia, a qual se mostra
insustentável do ponto de vista histórico e jurídico. Como aponta Hélio Bicudo (2001)
não pode haver conexidade em crimes praticados por agentes diferentes, que atinjam
bens jurídicos diversos. A mesma lei não pode, ao mesmo tempo, contemplar vítimas e
algozes, agentes do Estado e seus opositores. Mesmo assim, a defesa da autoanistia, da
“anistia de mão dupla” tem se mostrado inacreditavelmente eficaz e longeva, como será
visto na segunda parte deste artigo.
A Lei 6.683/1979 não garante, sequer, a libertação de todos os presos políticos e
a volta de todos os exilados: a maioria dos presos políticos saiu dos cárceres pela comutação de suas penas ou sob liberdade condicional. Havia presos políticos e
exilados impedidos de entrar no Brasil ainda em 1981. Assim, todos os princípios
programáticos da luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita contidos no trecho da carta
do I Congresso Nacional Pela Anistia, citados anteriormente, continuam valendo.
Constituem os nós górdios apontados pelo movimento pela anistia, os quais não foram
desatados até hoje: a abertura irrestrita dos arquivos da repressão; o esclarecimento
circunstanciado das torturas, das mortes e dos desaparecimentos políticos; a nomeação,
responsabilização e punição dos torturadores e assassinos de opositores; a erradicação
da tortura; o desmantelamento do aparato repressivo e a solução da questão dos mortos
e desaparecidos. Para os CBAs, a anistia só mereceria o epíteto de AMPLA, GERAL e
IRRESTRITA a partir da consecução desses princípios programáticos e do repúdio à
Lei 6.683/1979 – a Lei da Anistia Parcial, Restrita e Recíproca da Ditadura. É
emblemática a palavra de ordem cantada pelos militantes do movimento pela anistia ao
deixar o Congresso Nacional depois da aprovação da Lei 6.683/1979: “Agora é na rua, a
luta continua!”.
O movimento anuncia a continuidade da luta no terreno que lhe é próprio, o
terreno da luta política – as ruas, as praças, a ágora, a cidade – reforçando-se, assim, seu
caráter eminentemente instituinte. O confronto anistia anamnese X Anistia amnésia tem
pela frente um longo e árduo caminho a percorrer.
Desdobramentos, nos dias atuais, da construção da “estratégia do esquecimento”
Passados 50 anos do golpe e 35 da Lei de Anistia Parcial, parece evidente a
consolidação da hegemonia da construção do esquecimento, chamada neste artigo de
“anistia amnésia”. Tal hegemonia é corolário da Doutrina de Segurança Nacional, o
arcabouço ideológico do Estado de Segurança Nacional implantado pela ditadura
militar. Essa doutrina foi concebida como um projeto de interdição sistemático e
continuado do exercício da política. A sua essência é o terror compreendido no conceito
da existência do “inimigo interno” e da necessidade de sua eliminação, sendo
considerados inimigos todos aqueles que fazem ou pensam em fazer algum tipo de
oposição ao sistema.
A tortura erigida pela política de Estado e a montagem do gigantesco aparato
repressivo para monitorar, conter, reprimir e eliminar “inimigos internos” constituem os
instrumentos principais desse projeto. O principal ideólogo da Doutrina de Segurança Nacional, general Golbery do Couto e Silva, é também o principal responsável pela
tessitura do projeto de distensão/abertura e, na sequência, da anistia parcial e recíproca.
A Doutrina de Segurança Nacional contamina também a transição política em
curso desde o fim da ditadura militar (1985) – mais uma transição sem ruptura tutelada
pela hierarquia das Forças Armadas. Ela é protagonizada pelos mesmos atores que
articularam o golpe militar visando garantir a modernização conservadora do
capitalismo no Brasil: aceleração da acumulação/aprofundamento da
exploração/acirramento da repressão.
Ao longo dessa transição política – que já dura 29 anos – a anistia amnésia
segue seu curso, agora, no chamado Estado Democrático de Direito, instituído pela
Constituição de 1988. Esse fenômeno se enquadra em uma tradição política do ocidente,
que remonta à Grécia clássica, detectada por Nicole Loraux na recorrente “[...]
propensão democrática para esquecer mesmo o inesquecível.” (LORAUX, 1992, p. 66).
Segundo Cardoso (1999), a longevidade e o caráter continuísta e conservador da
transição são dois dos principais fatores a concorrer para a consolidação dessa tendência
para “esquecer o inesquecível”. Outro fator importantíssimo nesse processo é o
deslocamento operado pela esquerda na direção do pragmatismo, do reformismo, do
eleitoralismo, do gabinetismo e da esfera parlamentar (GRECO, 2003). Ao tomar
distância das energias utópicas do seu passado guerrilheiro, a esquerda perde sua
identidade, se domestica e elege a institucionalidade como seu elemento, seu espaço de
atuação.
Existe um agravante desolador entre os fatores que jogam água no moinho da
anistia amnésia, o qual envolve o espaço acadêmico. Trata-se de um tipo de
revisionismo presente em certa historiografia – que não é hegemônica, mas não deixa de
ser representativa – a qual incorpora a teoria dos dois demônios: direita e esquerda
teriam sido igualmente responsáveis pelo golpe e ambas seriam refratárias à
democracia. Militares e militantes revolucionários teriam cometido iniquidades durante
a ditadura militar, cada qual a seu modo, já que as duas partes pegaram em armas. Fica
evidente a desproporção do nivelamento do terror do Estado com a violência
revolucionária, como se a guerrilha tivesse prática idêntica à do aparato repressivo
montado pela ditadura, que institucionalizou o exercício de torturas, mortes e
desaparecimentos. Comete-se uma confusão conceitual que leva à desqualificação do
projeto revolucionário da esquerda. Trata-se do reducionismo de considerar a
democracia burguesa como único projeto histórico legítimo. As tentativas de testificação da existência do tal pacto social e a culpabilização do conjunto da sociedade
pelas mazelas da ditadura estão presentes nessa historiografia revisionista. Alega-se que
a ditadura foi apoiada por boa parte da sociedade, mas omite-se que outra boa parte a
repudiou e/ou a combateu o tempo todo. Os movimentos sociais e as lutas contra a
ditadura estão ausentes nesse tipo de análise: há uma capitulação diante do que Walter
Benjamin chama de “história dos vencedores”, aquela que tem como sujeitos exclusivos
a institucionalidade e as classes dominantes. Essa concepção certamente tem revigorado
a hegemonia da anistia amnésia.
Três eventos recentes revelam, de forma exemplar, como a anistia amnésia tem
sobrepujado a luta pela memória, verdade e justiça, chamada aqui de anistia anamnese:
o indeferimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF
153/DF pelo STF (29 de abril de 2010); o tratamento dado pelo Estado à condenação do
Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) pelos crimes
cometidos pela ditadura na repressão à Guerrilha do Araguaia (24 de novembro de
2010) e; a insuficiente e deficiente Comissão Nacional da Verdade (Lei 12 528 de 18 de
novembro de 2011).
A ADPF 153 foi ajuizada no STF, em outubro de 2008, pelo Conselho Federal
da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), sendo seu objeto a contestação do § 1º do
artigo 1º da Lei 6.683/1979. A OAB argui o dispositivo da conexidade da lei de anistia a
partir da sua recepção na Constituição de 1988, afirmando que:
Haveria “controvérsia constitucional” sobre se o referido dispositivo anistiou
também os crimes praticados por agentes públicos durante o regime ditatorial
de 1964-1985, incluindo, entre outros, crimes como os de homicídio,
desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e
atentado violento ao pudor. Tais crimes foram praticados de modo
institucionalizado pelo regime militar contra os seus opositores. (NEDER
MEYER, 2012, p. 14).
Na sessão do dia 29 de abril de 2010, transmitida ao vivo e em cores para todo o
Brasil, o STF declara a improcedência da ADPF 153 e firma a vigência da Lei
6.683/1979 e a constitucionalidade da interpretação do parágrafo 1º de seu artigo 1º.
Essa decisão – que não é passível de recursos, tem eficácia erga omnes e efeito
vinculante – institucionaliza a reciprocidade, interpretação prevalente e equivocada da
lei de anistia. O Estado brasileiro consagra a chamada “anistia de mão dupla”,
garantindo inimputabilidade para os agentes do Estado que estupraram, torturaram,
mataram e fizeram desaparecer os corpos de opositores.
A transcrição a seguir foi extraída do voto vencedor do relator Eros Grau,
acatado por sete dos nove ministros presentes, e trata da transição da ditadura para a
democracia. Seu texto está calcado no mesmíssimo repertório discursivo articulado pela
ditadura militar, discutido na primeira parte deste artigo. Parece um libelo ao “generoso
consenso”:
Há quem se oponha ao fato de a migração da ditadura para a democracia
política ter sido uma transição conciliada, suave em razão de certos
compromissos. Isso porque foram todos absolvidos, uns absolvendo-se a si
mesmos. Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa
amplitude. É inadmissível desprezarmos os que lutaram pela anistia como se
o tivessem feito, todos, de modo ilegítimo. Como se tivessem sido cúmplices
dos outros. Para como que menosprezá-la, diz-se que o acordo que resultou
na anistia foi encetado pela elite política. Mas quem haveria de compor esse
acordo, em nome dos subversivos? O que se deseja agora, em uma tentativa,
mais do que de reescrever, de reconstruir a História? Que a transição tivesse
sido feita, um dia, posteriormente ao momento daquele acordo, com sangue e
lágrimas, com violência? (BRASIL, 2010).
A semântica da concessão, da pacificação, da conciliação, do compromisso e do
esquecimento está explicitada, na íntegra, no documento de Eros Grau (73 páginas ao
todo). Para ele, a anistia de mão dupla é considerada necessidade histórica e o
movimento pela anistia é fruto de acordo político com a sociedade brasileira. Assim
sendo, o judiciário não pode modificar a Lei 6.683/1979. De resto, nenhuma mudança
seria desejável, pois comprometeria gravemente a “redemocratização” e a
“reconciliação nacional” alcançadas por ela. O voto faz o elogio do caráter “de elite” do
acordo: é daí que vem sua eficácia. Se o agente do pacto é a “elite política”, os
pacientes são “os subversivos”, meros depositários da nobre e desinteressada concessão
da anistia: os sujeitos exclusivos da história são as “elites” – o movimento popular não
existe. A palavra “subversivo” destaca-se como mais um jargão da ditadura militar
empregado com a maior desenvoltura.
O entendimento do significado da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita aí firmado,
compreende um deslizamento conceitual grave que tem sido reproduzido pela mídia: o
voto do ministro relator confunde essa anistia com a “anistia de mão dupla”. Para
desfazer essa incongruência, basta retomar o documento dos CBAs, citado na primeira
parte deste artigo: “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita” é a anistia para todas as
manifestações de oposição ao regime, sem qualquer restrição; na mesma linha, o
movimento repudia com veemência a “anistia recíproca”. Anistia enquanto direito à memória, à verdade e à justiça/anistia anamnese e anistia enquanto impunidade e
esquecimento/anistia amnésia são projetos que se excluem mutuamente.
Outra grande contradição do voto do STF é a que se refere ao caráter automático
da anistia concedida para os agentes do Estado que cometeram crimes contra a
humanidade. As vítimas da ditadura militar – além de terem sido monitoradas, presas e
torturadas – precisaram e precisam empreender longa peregrinação na burocracia estatal
para ter reconhecida a sua situação de anistiados. Primeiro, tiveram que recorrer ao
Decreto 84.143/1979, que também regulamentou o pedido de retorno ao serviço público
ativo, o qual dependia de decisão caso a caso das chamadas autoridades competentes.
Só a partir de 2002, a Lei 10.559, que instituiu a Comissão Especial de Anistia na esfera
do Ministério da Justiça, passa a regulamentar o regime jurídico do anistiado político
(NEDER MEYER, 2012). Tampouco essa lei tem aplicação automática: seu trâmite
pode demorar meses ou até anos. Os anistiados devem instruir os processos com vasta
documentação, e em caso de aprovação, haverá pedido formal de perdão por parte do
Estado brasileiro por meio da Comissão Especial de Anistia, sendo que o resultado tem
que ser devidamente publicado no Diário Oficial da União (DOU). Pois bem, os
torturadores e assassinos de presos políticos se submeterão a esse processo? Seus nomes
serão publicados no DOU? Haverá pedido de perdão em nome do Estado brasileiro?
Obviamente que não. A situação deles é especialíssima: a “anistia de mão dupla” que
receberam tem caráter automático, instantâneo e total.
O indeferimento da ADPF 153 escancara o reacionarismo histórico do judiciário
brasileiro, a sua subserviência em relação ao poder e o seu papel ex oficio de
mantenedor das relações de dominação e opressão. Essa decisão distancia o Brasil cada
vez mais do Direito Internacional de Proteção dos Direitos Humanos e de suas
instâncias de decisão. Em defesa inepta da soberania nacional, os debates e o voto do
STF desqualificam até mesmo os tratados assinados pelo país.
A institucionalização da “anistia de mão dupla” se constitui como tentativa de
blindagem do governo brasileiro em duas frentes, a externa e a interna. Na frente
interna, para que fosse possível – sem melindrar demais os militares –, daria resposta à
pressão dos movimentos de direitos humanos e dos familiares de mortos e
desaparecidos para a criação de uma Comissão da Verdade. Na frente externa: pouco
mais de duas semanas depois da decisão do STF, o Brasil se apresentaria perante a
Corte IDH como réu no processo do Caso Araguaia em que, pela primeira vez, o Estado
Brasileiro seria julgado por crimes cometidos pela ditadura militar.
Em agosto de 1995, o Caso Araguaia é apresentado à Comissão Interamericana
de Direitos Humanos pelas seguintes entidades: Comissão de Familiares de Mortos e
Desaparecidos Políticos, Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, Centro pela Justiça e o Direito
Internacional (CEJIL) e Human Rights Watch /Americas. Trata-se do Caso Gomes Lund
e outros (demanda 11552) vs. o Estado brasileiro – o Caso Araguaia.
Os copeticionários são vinte e dois familiares representando vinte e cinco
desaparecidos. Em 2000, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos admite o
caso e só o encaminha para a Corte IDH em 2009. Em 2010, pela primeira vez, o Estado
brasileiro é julgado e condenado por omissão em relação às graves violações dos
direitos humanos praticadas no período da ditadura militar: a sentença foi prolatada em
24 de novembro e publicada em 14 de dezembro de 2010.
Segundo a sentença de 24 de novembro de 2010 da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, Caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, o objeto da
demanda é o seguinte:
[Apurar] a responsabilidade do Estado brasileiro na detenção arbitrária,
tortura e desaparecimento forçado de setenta pessoas, entre membros do
Partido Comunista do Brasil [...] e camponeses da região [...], resultado de
operações do Exército brasileiro entre 1972 e 1975, no contexto da ditadura
militar. (CORTE INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS, 2010).
No banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos/Corte IDH, o
Estado brasileiro tem desempenho, no mínimo, patético. Para começar, quem o
representa é o Ministério da Defesa, o qual avisa que o Brasil não cumpriria a sentença
se fosse possível. Os juízes da Corte queriam entender porque o Ministro da Defesa não
cumpre as determinações referentes ao caso Araguaia e como é permitido a ele
desqualificar a própria Corte IDH e os tratados internacionais assinados pelo país. O exministro
da Justiça José Gregori – uma das testemunhas arroladas pelo Estado –
reproduz a argumentação do voto de Eros Grau no STF para sustentar a irretocabilidade
da Lei 6.683/1979. Sepúlveda Pertence, ex-presidente do STF, interpela a Corte IDH,
desqualifica o processo e defende apaixonadamente a bilateralidade da lei de anistia. O
perito do Estado brasileiro, Gilson Dipp – que hoje é membro da Comissão Nacional da
Verdade – fala de maneira extemporânea e descontextualizada sobre a ferramenta
jurídica da ADPF e afronta os familiares e peticionários presentes. O representante do
Ministério das Relações Exteriores mente em juízo: ele afirma que a Comissão de Busca
do Ministério da Defesa, criada em 2009, localizou doze corpos e identificou dois deles. A verdade é que foram os próprios familiares, na década de 1990, que, de forma
independente, localizaram e identificaram os restos mortais de Lúcia Petit e Bergson
Gurjão – os dois únicos guerrilheiros encontrados até agora.
O testemunho de Maria Amélia de Almeida Teles e Suzana Keniger Lisboa, que
acompanharam o julgamento na Corte IDH pela Comissão de Familiares de Mortos e
desaparecidos, é representativo do nível de insatisfação dos familiares:
No plano internacional, a ação ficou por quase uma década e meia na
Comissão Interamericana de Direitos Humanos/CIDH. O Estado brasileiro
não mediu esforços para que se arquivasse a ação. Não queria resolver o
problema, mas também não queria ser condenado. O Estado brasileiro
apostou no esquecimento. [...] No julgamento houve a participação de
familiares e de representantes do Estado. Durante a sessão de julgamento, o
Ministério da Defesa ameaçou não cumprir a sentença caso ela não fosse
exequível. Evidentemente o Estado brasileiro poderia ter adotado uma
postura democrática e designar para representá-lo o Itamaraty ou a Secretaria
de Direitos Humanos da Presidência da República. Os familiares sentiram-se
com “inimigos da pátria”, durante as sessões do julgamento. Aliás, a atitude
de ostentação representada pelo Ministério da defesa constrangeu a todos do
plenário e aos integrantes da Corte. (ALMEIDA; LISBOA, 2012, p. 61).
É esse o início do desenlace de uma peleja que vem se arrastando desde 1982,
quando os 22 familiares de 25 desaparecidos políticos iniciaram uma ação judicial de
natureza civil contra o Estado perante a Primeira vara Federal do Distrito Federal (Ação
Ordinária nº 82.00.24682-5). A demanda dos familiares era a mesma: encontrar os
restos mortais dos seus entes queridos.
A União também é condenada nesse processo: a sentença transitou em julgado
em 2007 e, simplesmente, o Estado brasileiro tem se recusado a executá-la. A causa
chega à Corte Interamericana de Direitos Humanos graças, mais uma vez, à
combatividade e persistência dos familiares dos mortos e desaparecidos políticos.
Ambas as sentenças – a interna e a internacional – têm sido mantidas na mais absoluta
invisibilidade por parte do governo e da grande mídia, da mesma forma que o seu objeto
o fora durante a ditadura militar, que mobilizou três desmesuradas campanhas
envolvendo cerca de 20 mil militares das três forças para massacrar menos de 70
guerrilheiros e, depois, buscou “[...] extirpar da história não só a memória, mas o
próprio acontecimento, transformando-o em ‘desacontecimento’.” (GRECO, 2003, p.
117). As Forças Armadas continuam a negar a existência de arquivos – alegam que eles
foram destruídos com base no Decreto 79.099/1977 – e estão determinadas, com o
respaldo do governo, a não se manifestar oficialmente sobre a Guerrilha do Araguaia.
A execução da sentença internacional é monitorada pela Corte IDH – o Brasil
teria até 14 de dezembro de 2011 para encaminhar seu cumprimento inicial. Suas
determinações mais importantes estão resumidas a seguir:
a) O Estado brasileiro deve remover todos os obstáculos práticos e jurídicos
para garantir a responsabilização de todos envolvidos em violações graves
de direitos humanos durante a ditadura militar, não só aqueles que
participaram do massacre à Guerrilha do Araguaia. A interpretação da lei de
anistia firmada pelo STF, que contraria o Direito Internacional, é o principal
obstáculo a ser removido;
b) Quanto à negativa de garantir o direito à verdade devido aos familiares e à
sociedade, determinam-se a obrigação de investigar os fatos; a realização de
ato público de reconhecimento de sua responsabilidade; a localização e
devolução dos corpos dos desaparecidos e a sistematização e publicação de
toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia e de todas as violações de
direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar;
c) O Brasil deve ratificar a Convenção Interamericana sobre o
Desaparecimento Forçado de Pessoas e adotar as medidas necessárias para
tipificar esse crime, em conformidade com os parâmetros interamericanos;
d) O Brasil deve adequar sua legislação sobre o acesso à informação de acordo
com o estabelecido no artigo 2 da Convenção Americana;
e) Há, ainda, a determinação de medidas de reparação aos familiares – que são
considerados vítimas tanto quanto seus parentes desaparecidos – que
envolvam, além da indenização, atendimento médico e
psicológico/psiquiátrico, de forma gratuita, imediata e continuada;
f) Quanto à criação de uma Comissão da Verdade, a Corte “exorta” – não
“determina” – sua implementação, contanto que haja independência,
idoneidade e transparência na indicação de seus membros. A Corte faz uma
ressalva importante: as atividades dessa Comissão não eximem o Estado da
obrigação de estabelecer a verdade e assegurar a responsabilização judicial
dos envolvidos em graves violações dos direitos humanos durante a ditadura
militar, através de processos judiciais penais.
Até agora, apenas cinco providências foram tomadas pelo Estado brasileiro: a
publicação da sentença no DOU (15/06/2011), praticamente sob sigilo – nem os
peticionários e os familiares foram avisados; o projeto Clínicas do Testemunho para
assistência psicológica às vítimas da ditadura; a ratificação tardia da Convenção
Interamericana sobre Desaparecimentos Forçados (abril/2011) – que ainda não foi
sancionada pela presidência da República; a Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011,
que cria a limitadíssima Comissão Nacional da Verdade e; a Lei 12.527, de 18 de
novembro de 2011, de acesso às informações. Essa medida é um pouco mais
substancial, mas não resolve a questão. Os arquivos da repressão, com pouquíssimas
exceções, continuam inacessíveis para o conjunto da sociedade. Até novembro de 2011
prevalecia na legislação brasileira de arquivos (Lei 11.111/2005) a figura do “sigilo
eterno” para documentos classificados.
Os pontos críticos, a própria essência da sentença, no entanto, permanecem
intocados: a questão dos mortos e desaparecidos e a punição dos crimes da ditadura.
Documento expedido pelas entidades peticionárias em 14 de dezembro de 2011, um ano
depois da publicação da sentença, demonstra a preocupação em relação ao seu
cumprimento:
O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), o Grupo Tortura
Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM/RJ) e a Comissão de Familiares de
Mortos e Desaparecidos Políticos expressam sua preocupação pela falta de
diligência no cumprimento integral da sentença do Caso Araguaia.
Transcorrido um ano da publicação da sentença, as entidades representantes
das vítimas consideram que há um descumprimento parcial das obrigações de
reparação individual destinadas aos familiares das vítimas desaparecidas,
cujo prazo vence hoje. A principal preocupação é a subsistência da dívida por
verdade e justiça no país. [...] É necessário que se realize concomitantemente
o passo seguinte: a realização da verdade judicial, concretizada por meio dos
julgamentos individuais. Como explicitado pela Corte Interamericana: “as
atividades e informações que, eventualmente, recolha [a Comissão de
Verdade], não substituem a obrigação do Estado de estabelecer a verdade
e assegurar a determinação judicial de responsabilidades individuais,
através dos processos judiciais penais.” (CEJIL, 2011 – grifo nosso).
Vê-se, portanto, que o Estado brasileiro tem confrontado abertamente os
princípios internacionais dos direitos humanos, a sentença da Corte IDH e a própria
Corte – reconhecida pelo país desde 1998, seis anos depois da adesão ao Pacto de San
José da Costa Rica/Convenção Interamericana de Direitos Humanos. O Estado tem
confrontado, sobretudo, os familiares dos mortos e desaparecidos.
Mesmo assim, depois da condenação pioneira do Estado brasileiro no Caso
Araguaia, o Brasil foi denunciado mais duas vezes à Comissão Interamericana de Direitos Humanos por questões referentes à ditadura militar. O caso Wladimir Herzog –
assassinado sob tortura no DOI-CODI do II Exército/SP, em 1975 – foi aberto
oficialmente na Comissão em março de 2012. Em junho de 2013, o Brasil foi
notificado, pela comissão, pelo caso Luiz Roberto José da Costa – militante da Ação
libertadora Nacional (ALN), desaparecido em 1973, também assassinado sob tortura no
DOI-CODI/SP. O mérito dessas iniciativas é todo dos familiares dos mortos e
desaparecidos e dos movimentos que mantêm ativa a luta por memória, verdade e
justiça.
O terceiro evento a ser analisado neste artigo, que revela a tendência de controle
da memória pelo Estado, é a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Aqui
não será feito inventário da atuação da comissão, será abordada apenas a disputa
memória x esquecimento no processo de sua concepção, criação e instalação. O Poder
Executivo apresenta à Câmara dos Deputados, em 20 de maio de 2010, o Projeto de Lei
7.376, no mesmíssimo dia da audiência pública sobre o Caso Araguaia na Corte
Interamericana de Direitos Humanos, que é a ocasião de maior visibilidade do processo.
Logo depois, portanto, da fatídica decisão do STF de institucionalizar a “anistia de mão
dupla”. Essa coincidência de datas certamente não é fortuita: os três eventos se
articulam politicamente na consolidação da “estratégia do esquecimento”.
É preciso não perder de vista que é a luta dos familiares e dos setores mais
combativos do movimento de direitos humanos que garante a colocação na ordem do
dia da proposta de criação de uma Comissão da Verdade e Justiça. Isso se dá a partir de
sua atuação na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em 2008, em
Brasília, no espaço do Congresso Nacional, sob a coordenação da Secretaria Especial
dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR), da Comissão de
Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) e do Fórum de
Entidades Nacionais de Direitos Humanos (FENDH). As resoluções aprovadas dão
origem ao III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3). Os movimentos e os
familiares fazem aprovar na plenária final da conferência (08/12/2008) a criação de uma
Comissão Nacional da Verdade e Justiça, conforme o documento Resoluções
Aprovadas na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos – Democracia,
Desenvolvimento e Direitos Humanos, Superando as Dificuldades, nos seguintes
termos:
Constituir a Comissão Nacional de Verdade e Justiça, composta de forma
plural, com maioria de representação dos movimentos socais e com a
participação de familiares de mortos e desaparecidos políticos, com caráter
público, transparente e prazo determinado para início e término dos trabalhos,
com plenos poderes para a apuração dos crimes de lesa humanidade e
violação de direitos humanos cometidos durante a articulação para o golpe e
a ditadura militar, devendo nominar e encaminhar aos órgãos competentes
para punição dos acusados por esses crimes e registrar e divulgar todos os
seus procedimentos oficiais, a fim de garantir o esclarecimento
circunstanciado de torturas, mortes e desaparecimentos. (BRASIL, 2008).
Essa formulação começa a ser descaracterizada já na publicação do PNDH3, que
se refere apenas a uma Comissão da Verdade, omitindo a palavra “justiça”. O Decreto
Federal 7.037, de 21 de dezembro de 2009, declara aprovado o PNDH3, estabelecendo
exigência de cumprimento pelos órgãos da administração pública federal. Além da
Comissão da Verdade e Justiça, o movimento popular força a introdução de avanços –
alguns mais significativos, outros menos – em relação à democratização dos meios de
comunicação, à luta contra o latifúndio, aos direitos da comunidade LGBT, à
descriminalização do aborto, à laicidade do Estado.
O PNDH3 passa, então, a ser objeto de ofensiva selvagem dos setores mais
reacionários da sociedade, que se sentem ameaçados por esses avanços. São os mesmos
setores que articularam o golpe militar, respaldaram a ditadura, financiaram a tortura e
encaminharam a transição conservadora: as Forças Armadas, os latifundiários, a grande
mídia e a ortodoxia cristã.
A questão que mais polariza é, sem dúvida, a Comissão da Verdade. Com o
alarde da reação dos militares, as tergiversações do governo e o acirramento da
polarização, o tema ganha espaço na mídia ao longo de 2009. Os militares reproduzem
ipsis literis o discurso raivoso e golpista, cujo núcleo é a palavra ‘revanchismo’, em
todas as suas variações. O governo Lula capitula frente à exacerbação da insatisfação
dos militares e trata de amortecer os pontos polêmicos – todos eles – em nome da
governabilidade e da fidelidade às Forças Armadas: em 13 de janeiro de 2010, foi
promulgado o decreto 7.177, que descaracteriza totalmente o PNDH3. A partir dele, o
PNDH3 não está mais aprovado, mas apenas “tornado público”; retiram-se todos os
pontos polêmicos da versão original, um a um. A proposta da Comissão da Verdade é
descaracterizada de vez e o direito à verdade é atrelado definitivamente ao imperativo
de promoção da “reconciliação nacional”, o eterno mantra da anistia amnésia.
A Comissão da Verdade entra, definitivamente, na pauta oficial, em dinâmica
muito semelhante àquela da anistia parcial descrita na primeira parte deste artigo: não havendo como contorná-la, o governo vai procurar enredá-la, enquadrá-la e
instrumentalizá-la.
O longo curso do Projeto de Lei 7.376/2010 – um ano e meio – no Congresso
Nacional, é marcado pela ausência de debate público: a discussão se mantém
emparedada nos gabinetes dos parlamentares e no aparelho de governo – certamente
também na caserna. Movimentos pelos direitos humanos e pelos familiares de mortos e
desaparecidos são totalmente alijados do processo. Nem uma sequer de suas emendas é
acatada – e muitas foram apresentadas; nenhum de seus pedidos de audiência é
atendido. As emendas aprovadas são de autoria do DEM, do PSDB e do PPS. O senador
tucano Aloysio Nunes Ferreira, que não é exatamente um simpatizante da causa, foi o
relator do projeto. A lei da CNV é reflexo desse processo.
O projeto só entra em pauta na Câmara dos Deputados – em regime de urgência
urgentíssima – no dia 21 de setembro de 2011. Em 18 de novembro de 2011, é aprovada
a Lei 12.528 que determina a criação, na esfera da Casa Civil da Presidência da
República, da CNV, sendo que, no mesmo dia, é aprovada a Lei 12.527, que trata do
acesso às informações. O governo brasileiro precisava mostrar serviço: além da pressão
interna dos movimentos que lutam por verdade e justiça, em 14 de dezembro de 2011 se
esgotaria o prazo inicial estabelecido pela Corte IDH para o cumprimento da sentença
do Caso Araguaia.
O primeiro artigo da Lei 12.528/2011, a CNV, estabelece o seguinte:
Art. 1º - É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a
Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as
graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art.
8
o
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o
direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional
(BRASIL, 2011).
O caput do art. 1º sintetiza os parâmetros da CNV. Eles estão compreendidos no
binômio “verdade e reconciliação nacional” em contraposição à “verdade e justiça”. O
termo forte é “reconciliação nacional”. É esse o desígnio da CNV, o qual informa a letra
e o espírito da Lei 12.528/2011. O § 4º do art. 4º estabelece que “[...] as atividades da
CNV não terão caráter jurisdicional ou persecutório [...]” (BRASIL, 2011) – a CNV não
fará justiça. O destino do acervo consolidado por ela será o Arquivo Nacional e pronto
(§ único do art. 11º) – nada de divulgação ampla e nada de Ministério Público Federal.
O prazo regulamentar de duração da comissão, de meros dois anos (art. 11º), e a
abrangência do seu objeto de análise (art.1º) – longos quarenta e dois anos (1946 a 1988) – revelam a intenção de mitigar o foco dos crimes da ditadura militar. O § 2º do
art. 4º dispõe que os membros devem manter o sigilo dos documentos e informações
classificadas fornecidas à comissão e o art. 5º abre a possibilidade da realização de
sessões secretas – a cultura do sigilo tem espaço para prosperar na dinâmica da CNV. O
§ 1º do art. 7º deixa aberta a possibilidade de participação de militares, o que é
considerado inadmissível pelos movimentos, por motivos óbvios. Outro problema é a
falta de autonomia, devida ao atrelamento da CNV à Casa Civil da Presidência da
República (art. 11º).
Familiares de mortos e desaparecidos e entidades que lutam por verdade
e justiça criticam com veemência a letra e o espírito da lei da CNV. As várias emendas
apresentadas por esses setores – e negadas – referem-se exatamente aos dispositivos
elencados acima. Em documento datado de 19 de setembro de 2011 – intitulado Mudar
o PL 7376 para que a Comissão da Verdade apure os crimes da ditadura com
autonomia e sem sigilo – representantes de associações de ex-presos e perseguidos
políticos, familiares e grupos de direitos humanos afirmam que “[...] caso esses
dispositivos sejam mantidos farão da Comissão Nacional da Verdade uma farsa e um
engodo.” (SINDICATO DOS ADVOGADOS DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2011).
O documento é assinado por 189 indivíduos e 35 entidades. Nenhuma emenda foi
aceita, portanto os dispositivos foram mantidos.
O conjunto de argumentações forjado na concepção e sustentação da Lei
12.528/2011 reproduz fielmente – muitas vezes literalmente – a taxonomia instituída
pela ditadura militar na tessitura do projeto de distensão/abertura da anistia parcial e
recíproca: generosidade, conciliação, pacificação, estabilidade, reciprocidade, simetria,
consenso, ponderação e seus antípodas: revanchismo, ódio, ressentimento. Trata-se do o
repertório discursivo da transição pactuada.
A instalação da Comissão Nacional da Verdade, em 16 de maio de 2012,
mobiliza todo esse repertório discursivo, cujo complemento é o tom de otimismo,
ufanismo e auto enaltecimento – é esse o registro da fala de Dilma Rousseff. A palavra
“celebração” é utilizada várias vezes: todos são competentes e responsáveis, o país
conquistou maturidade na democracia, todos estão em festa. É emblemática a chegada
da presidente no Palácio do Planalto, ladeada pelos ex-presidentes Lula e Sarney – foto
de capa de vários jornais do dia. É o próprio retrato instantâneo do caráter da transição
pactuada ainda em curso: estão todos, agora, no mesmo campo.
Não há voz dissonante alguma. Vera Paiva, filha do desaparecido político
Rubens Paiva, havia sido convidada para falar, mas lá mesmo na cerimônia foi
desconvidada, para não melindrar os militares – o alto comando das Forças Armadas
estava presente. Todos os cinco ex-presidentes vivos também estavam lá e a todos é
atribuído protagonismo na luta pela “verdade e conciliação”. Esse tema e o elogio da
transição pactuada transversalizam o discurso da presidente. São expressivos os trechos
a seguir:
Ao instalar a Comissão da Verdade não nos move o revanchismo, o ódio ou
o desejo de reescrever a história de uma forma diferente do que aconteceu,
mas nos move a necessidade imperiosa de conhecê-la em sua plenitude, sem
ocultamentos, sem camuflagens, sem vetos e sem proibições [...].
Assim como respeito e reverencio os que lutaram pela democracia
enfrentando bravamente a truculência ilegal do Estado, e nunca deixarei de
enaltecer esses lutadores e lutadoras, também reconheço e valorizo pactos
políticos que nos levaram à redemocratização. (PORTAL DO PLANALTO,
2012 – grifo nosso).
Ao apresentar os sete membros da CNV – todos eles acadêmicos e/ou juristas –
Dilma Roussef afirma: “[...] o país reconhecerá nesse grupo, não tenho dúvidas,
brasileiros que se notabilizaram pelo espírito democrático e pela rejeição a confrontos
inúteis ou gestos de revanchismo.” (PORTAL DO PLANALTO, 2012). São esses os
critérios do governo para a composição dessa comissão, consignados no registro da
busca compulsiva do consenso, do realismo político, da rejeição do dissenso e da luta
política. Dois membros da CNV, Gilson Dipp – seu primeiro coordenador e porta-voz –
e José Carlos Dias, antes mesmo de tomar posse, passam a defender que sejam
investigados “os dois lados”, ou seja, a apuração também dos supostos crimes
cometidos pela esquerda contra a Ditadura Militar.
Desde que foi anunciada, a CNV tem sido objeto de críticas constantes por parte
dos familiares de mortos e desaparecidos políticos e dos movimentos que lutam por
verdade e justiça. Em Nota Oficial, de 15 de maio de 2012 – ainda na véspera, portanto,
de sua instalação – o comitê paulista Memória, Verdade e Justiça, critica a pretensa
imparcialidade da composição da CNV e repudia “declarações preocupantes de alguns
de seus membros”:
O CPMVJ considera que o Sr. Gilson Dipp, ministro do Superior Tribunal de
Justiça, não reúne as condições necessárias para integrar a Comissão, por
haver atuado como perito do Estado brasileiro na Corte Interamericana de
Direitos Humanos, tendo atuado contra os familiares dos guerrilheiros do
Araguaia cujos corpos encontram-se desaparecidos até a presente data. [...] O
CPMVJ estranha e repele declarações de alguns membros da recém-nomeada
Comissão Nacional da Verdade que contrariam o elementar sentido de sua
criação. Tratando-se de uma Comissão que tem por objetivo a verdade,
espanta que a própria verdade de sua criação seja obscurecida por alguns de
seus membros. A Comissão instala-se para esclarecer violações de direitos
humanos e crimes contra a Humanidade de responsabilidade do Estado
brasileiro. Nisto não há “outro lado”. (COMITÊ PAULISTA PELA
MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA, 2012).
A matéria Comissão da verdade rebate críticas de ONGs, publicada no
Estadão.com em 13 de agosto de 2012, é enfática:
Em carta aberta à CNV, datada de 22 de outubro de 2012, o Coletivo pela
Construção de uma Frente Independente pela Memória, Verdade e Justiça/MG, o qual
foi criado no mesmo dia, em Belo Horizonte, rejeita essa comissão. A peculiaridade
deste coletivo é o fato de não ter qualquer tipo de vínculo governamental ou
institucional. O documento manifesta posição crítica “[...] em relação à concepção que
fundamenta encaminhamentos que considerados insatisfatórios, antidemocráticos e
equivocados [...]” (FRENTE INDEPENDENTE PELA VERDADE, MEMÓRIA E
JUSTICA, 2013), nos seguintes termos:
Ainda não conquistamos o direito à verdade, à memória e à história, o que
passa necessariamente pela construção de uma Comissão de Verdade e
Justiça independente e popular. Consideramos inaceitável a Comissão
Nacional da Verdade que exclui a Justiça, cuja efetividade foi comprometida
desde o Projeto de Lei 7376, de 20 de maio de 2010. A Comissão da Verdade
sem Justiça [...] expressa a concepção conservadora do governo, de sua base
aliada e do conjunto dos parlamentares. Trata-se de interdição do debate
público e de fidelidade ao compromisso imposto pelas forças armadas e pelos
empresários que articularam e sustentaram a ditadura militar: a sua essência é
constituída pela manutenção da impunidade – ou melhor, da inimputabilidade
– dos torturadores e assassinos de opositores e pela consolidação de uma
cultura da conciliação. [...] Somente o combate da classe trabalhadora e do
movimento popular terá condições de erradicar de vez da herança da ditadura
militar. A única maneira de reverter esta situação de barbárie é o
fortalecimento da nossa luta com radicalidade, unidade e horizontalidade.
(FRENTE INDEPENDENTE PELA VERDADE, MEMÓRIA E JUSTICA,
2013).
A Carta Aberta à CNV, datada de 15 de junho de 2013 e assinada por 150
familiares de mortos e desaparecidos políticos e 25 movimentos de luta pela verdade e
justiça – dentre os quais, 17 Comissões da Verdade setoriais ou locais – critica a
“opacidade, falta de unidade e morosidade” e a falta de um plano mínimo de trabalho. A
Carta Aberta denuncia a limitação do relatório parcial da CNV, afirmando que este
“demonstrou desconhecimento das informações acumuladas, ao longo de mais de 40
anos, pelos envolvidos na luta pelo resgate da memória e da verdade histórica”. As duas
principais propostas são as seguintes:
2. Que a CNV intensifique as audiências públicas, devidamente organizadas,
convocando agentes do Estado envolvidos nas graves violações aos direitos
humanos, bem como as testemunhas - vítimas, familiares, sobreviventes;
3. Que o foco das investigações da CNV seja o esclarecimento dos casos dos
mortos e desaparecidos políticos, motivo esse que levou à criação e
constituição da CNV (COMITÊ DE MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA
DO CEARÁ, 2013).
Os três documentos e a matéria citados são representativos da insatisfação dos
familiares de presos políticos e dos movimentos que lutam por verdade e justiça quanto
aos limites estruturais e políticos da CNV. É preciso reconhecer, no entanto, que o tema
se tornou público e as comissões da verdade proliferaram em todo o Brasil. Muitas
delas, porém, mesmo mantendo alguma criticidade, se instituem como braço auxiliar da
CNV, o que compromete a sua independência. A insuficiência e deficiência dessa
comissão a coloca na linha da construção sistemática do esquecimento – a anistia
amnésia.
Brevíssimas considerações finais: reatualização da discussão em torno do Estado
de Segurança Nacional ao Estado Penal
A criação da Comissão Nacional da Verdade, articulada com os outros dois
eventos tratados neste artigo – o indeferimento da ADPF 153 pelo STF e o tratamento
dado à condenação do Brasil pela Corte IDH – demonstram a enorme dificuldade do
Estado brasileiro de se haver com as próprias iniquidades. Até hoje, o contencioso da
ditadura militar sequer foi equacionado: os princípios programáticos da luta pela Anistia
Ampla, Geral e Irrestrita, descritos na primeira parte deste artigo, continuam valendo –
todos eles. A cultura da repressão desenfreada, da lógica da suspeição, da impunidade,
do sigilo permanece arraigada no aparelho institucional e no aparato repressivo.
Mantém-se incólume o projeto de controle da memória e de apropriação da história – a
“estratégia do esquecimento” segue sua longa marcha. Como aponta Le Goff (1996):
[...] tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes
preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e
dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da
história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória
coletiva. (LE GOFF, 1996, p. 426).
O ano do cinquentenário do golpe militar e dos 35 anos da Lei de Anistia
continua marcado pela reciclagem nefasta da Doutrina de Segurança Nacional: a tortura
se mantém como uma das instituições mais sólidas do país; o aparato repressivo
continua operante e tem incrementado os instrumentos de violência acumulados durante
a ditadura militar e a destruição do espaço público continua a ser praticada. Os inimigos
a serem abatidos são os mesmos de sempre: a luta popular e aqueles 2/3 da população
que vivem no limiar da linha de pobreza.
O Estado Democrático de Direito – sucedâneo do Estado de Segurança Nacional
– constitui-se em Estado Penal. Este é caracterizado pela guerra generalizada contra os
pobres; pelo genocídio institucionalizado de negros e índios e pela política de
encarceramento em massa.
A população carcerária do Brasil, a quarta maior do mundo, é de mais de 500
mil pessoas. A Polícia Militar – herança viva e ativa da ditadura – é considerada a mais
violenta do mundo. Multiplicam-se as evidências empíricas recentes. As chacinas
periódicas adquiriram sistematicidade assustadora. Nos crimes de maio de 2006, em São
Paulo, 493 pessoas – em sua maioria jovens e negros de periferia – foram assassinadas
pela polícia em duas semanas; ainda em São Paulo, 200 pessoas foram mortas do
mesmo modo no mês de junho de 2012. Durante os XV Jogos Panamericanos no Rio,
em 27 de junho de 2007, o saldo da maior ocupação conjunta das favelas – 1350
homens da Polícia militar, Polícia Civil e Força Nacional de Segurança – foi o massacre
de, pelo menos, 19 moradores do Complexo do Alemão. De maio a junho de 2007, 44
pessoas foram mortas pela polícia no local.
Continua em vigor a Lei de Segurança Nacional, brandida agora contra jovens
que participaram das belas jornadas de junho/2013 – durante a Copa das Confederações.
Milhões de manifestantes ocuparam as ruas e foram selvagemente reprimidos também
pelo conjunto do aparato repressivo – Guarda Municipal, Polícia Civil, Polícia Militar,
Força Nacional de Segurança. Além de centenas de feridos e dezenas de presos – que
passam a fazer parte do conjunto de “novos presos políticos” – a repressão deixou cerca
de duas dezenas de mortos: no Bairro Nova Holanda, no Complexo da Maré, Rio de
Janeiro, o Batalhão de Operações Especiais (BOPE) executou sumariamente pelo menos dez pessoas e, só na região metropolitana de Belo Horizonte, mais quatro jovens foram
mortos durante as manifestações.
O caso mais emblemático foi o do pedreiro Amarildo de Souza, torturado e
morto na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha, Rio de Janeiro, em 14 de
julho de 2013, escancarando o caráter da “pacificação” que se quer adotar como política
de Estado no Brasil. O corpo de Amarildo nunca foi encontrado, assim como boa parte
dos 493 mortos nos crimes de maio em São Paulo – são os novos “desaparecidos
políticos”. É expressiva a palavra de ordem mais cantada pelos manifestantes desde
então: “Mataram, mataram, mataram o Amarildo. Cadê, cadê os desaparecidos?”.
A repressão no campo completa o quadro de escalada do terror de Estado. O
relatório da Comissão Pastoral da Terra Conflitos no Campo Brasil 2012 aponta
crescimento de 24% no número de trabalhadores mortos: 36 em 2012. Existem mais de
cem trabalhadores rurais presos. Até abril de 2013, mais nove foram trucidados em
conflitos de terra, em nome do latifúndio e do agronegócio.
O que está na base de tudo isto é a “estratégia do esquecimento”, adotada como
política de Estado. Esqueceram-se dos crimes da ditadura a partir da interdição da
punição dos responsáveis e dos crimes cometidos e banalizados pelo chamado Estado
Democrático de Direito em nome do “neoliberalismo” – ele também tributário da
Doutrina de Segurança Nacional.
É Francisco de Oliveira que decreta, sem meias palavras, que “[...] a face real [do
neoliberalismo brasileiro] é o totalitarismo.” (OLIVEIRA, 1999, p. 81). Segundo ele,
está em curso no país um processo de destruição continuada da política baseado na
criminalização do dissenso, na “desnecessidade” do público, na destituição da fala e –
por mais drástico que pareça – no fim da sociedade.
A tese 6 sobre o conceito de história de Walter Benjamin conclui este artigo,
constituindo trágica exortação à necessidade da luta:
O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para
ambos o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu
instrumento. Em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo,
que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como o salvador;
ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no
passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador
convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo
vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (BENJAMIN, 1993, p.
223-224).
50 years since the Military Coup / 35 years of the Amnesty Law:
the long journey of the “forgetting strategy”
Abstract
This paper analyses the course of the construction of forgetting, the so-called
“forgetfulness construction” in Brazil, established in the twenty one years of
military dictatorship and sustained in the twenty nine years of the agreedupon
political transition. The starting-point is the struggle for general
amnesty. Three groups of questions will be discussed: 1) the character of the
struggle for general amnesty and the contradictions of the partial amnesty; 2)
the role of three recent events in the consolidation of the forgetfulness
construction: refusal by the Supreme Court of the ADPF 153; the treatment
given by the Brazilian State of the condemnation by the Inter-American
Court of Human Rights for the crimes perpetrated by the dictatorship in the
repression of the Araguaia Guerrillas, the creation of the National Truth
Committee; and 3) the present situation of the forgetfulness strategy. In this
paper, the forgetfulness strategy is considered a strong institution, responsible
for the sustenance of a culture of impunity.
Keywords: Dictatorship; Amnesty; Forgetfulness; Repression; Justice;
Impunity.
*
Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do Instituto Helena
Greco de Direitos Humanos e Cidadania. Integrante da Frente Independente pela Memória, Verdade e
Justiça de Minas Gerais.
1
Covenants without the sword are but words – Thomas Hobbes.
2
Anistia anamnese/anistia amnésia – formulação inspirada em Jean Claude Métraux (1998, p. 107).
REFERÊNCIAS
I CONGRESSO NACIONAL PELA ANISTIA. Carta do Congresso Nacional pela
Anistia: Compromisso com a Anistia, Proposições políticas gerais, Programa mínimo de
ação. Resoluções. São Paulo, novembro de 1978. (Fundo Comitê Brasileiro de
Anistia/MG – Arquivo particular de Helena Greco).
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e
técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 223-224.
BICUDO, Hélio. Lei da anistia e crimes conexos. In: TELES, Janaína (Org.). Mortos e
desaparecidos políticos: reparação ou impunidade?. São Paulo: Humanitas, 2001. p.
85-88.
BRASIL. Lei nº 6.683, de 28 de agosto de. 1979. Concede anistia e dá outras
providências. Disponível em: .
Acesso em: 01 nov. 2013.
BRASIL. Resoluções Aprovadas na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos
– Democracia, Desenvolvimento e Direitos Humanos, Superando as Dificuldades.
dez. 2008. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2013.
BRASIL. Arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 153/DF. 2010.
Supremo Tribunal Federal. Disponível em:
. Acesso em: 15 nov.
2013.
Cadernos de História, Belo Horizonte, v. 15, n. 22, 1º sem. 2014
Dossiê 50 anos do golpe civil-militar no Brasil:
Dossiê 50 anos do golpe civil-militar no Brasil:
http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoshistoria/article/view/P.2237-8871.2014v15n22p160/7017
file:///C:/Users/Bizoca/Downloads/6238-29307-1-PB.pdf
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