O
dia 1º de abril marca os 59 anos do golpe militar de 1964. Este instaurou no
Brasil o Estado de Segurança Nacional - uma ditadura que durou 21 anos
(1964-1985). A ela seguiram-se 33 anos de transição pactuada e sem ruptura (1985-2018),
controlada pelos militares. Tudo isto acumulou forças para o golpe de 2016 e
desembocou no governo Bolsonaro (2019-2022), entusiasta da ditadura, de torturadores
e milicianos. Governo genocida que levou às máximas consequências o projeto consolidado
pela ditadura militar: a modernização fascista do capitalismo. Esta foi viabilizada
pelo mais exacerbado terrorismo de Estado, instrumento essencial do
totalitarismo de mercado – o neoliberalismo
em vigor.
A ditadura
militar brasileira é a segunda mais longeva de todas as que se instalaram na
América Latina nos anos 1950, 1960 e 1970 – a primeira é a do Paraguai
(1954-1989). Todas elas se espelharam no Brasil para a construção dos
respectivos aparatos repressivos. Atuaram em conjunto no continente na
famigerada Operação Condor. No
Brasil, as Forças Armadas articularam organicamente as polícias civis e
militares, a comunidade de informações
e grupos de extermínio (as atuais milícias) para trucidar opositores. O
empresariado, os latifundiários e a imprensa corporativa participaram
ativamente da repressão. Tortura, extermínio, desaparecimento forçado,
assassinato da memória, censura, ódio mortal aos Direitos Humanos se tornaram
políticas de Estado.
Em
todas as ditaduras latino-americanas houve forte protagonismo do imperialismo
estadunidense. Como no Brasil, todas adotaram a Doutrina de Segurança Nacional,
que preconiza o imperativo da eliminação dos inimigos internos, da guerra
ideológica permanente contra o comunismo. São inimigos internos a classe trabalhadora, o movimento estudantil, as
pessoas mobilizadas (organizadas ou não, armadas ou não) na luta contra o
regime. São inimigos internos também as classes
perigosas e torturáveis de sempre: a população pobre e periférica, as
pessoas consideradas pela ditadura subversivas,
marginais, supérfluas, diferentes. Todas e todos, afinal, que pudessem
colocar em risco projeto burguês de desenvolvimento
e segurança e a integridade do lema Deus,
Pátria e Família.
A política
indigenista da ditadura foi ecocida e genocida. Houve devastação da Amazônia,
como exigia o tal desenvolvimento e
segurança. Mais de dez mil indígenas foram exterminadas/os. Foram criados
campos de concentração para os Povos Indígenas como o Reformatório Krenak (Resplendor/MG)
e a Fazenda Guarani (Carmésia/MG), controlados pela FUNAI e pela polícia
militar de Minas Gerais. Foi genocida a política econômica de arrocho,
desemprego e fome. A repressão nas favelas e periferias atingiu sobretudo o
Povo Negro. Houve profusão de cemitérios clandestinos, locais de desova e valas
comuns – a do Cemitério D. Bosco (Perus, São Paulo) é a mais conhecida. Nela
foram encontradas 1043 ossadas, ainda não identificadas. Aí estão opositores da
ditadura mortos sob tortura e corpos periféricos chacinados pela polícia e
pelos esquadrões da morte. Há também muitas crianças certamente também vítimas
da repressão e do negacionismo da ditadura em relação à epidemia de meningite no
início dos anos 1970. As crianças foram alvo constante da ditadura. A operação
clandestina conhecida como Operação
Camanducaia sintetiza este horror: em 1974, 93 crianças e adolescentes
acusados de pequenos delitos foram sequestrados e presos por policiais de São Paulo.
Perto de Camanducaia/MG foram despidos, espancados e jogados em um barranco.
Apenas 41 deles conseguiram chegar na cidade. Estavam nus, torturados e com
fome. Os outros 52 continuam desaparecidos.
Desde
a saída do último general-ditador, há quase quatro décadas, o legado da
ditadura continua a nos cercar por todos os lados. Nenhuma sociedade escapa
incólume a 21 anos de ditadura militar. Muito menos esta, que tem mais de 500
anos de opressão sobre os Povos Originários e mais de 350 anos de escravização
do Povo Negro. Houve alguns avanços pontuais. Todos conquistados a duras penas
pelos movimentos sociais, pelos familiares dos mortos e desaparecidos políticos, pelo movimento de Anistia Ampla, Geral e
Irrestrita, pela luta por Direitos Humanos e por Memória, Verdade e Justiça.
O
contencioso principal, no entanto, sequer foi tangenciado. Os arquivos da
repressão continuam hermeticamente fechados. O aparato repressivo é de
dificílimo desmonte, assim como o ordenamento jurídico que o sustenta: não é
possível desinventar tal coisa. As Forças Armadas, a ABIN (sucedânea do SNI),
as polícias civis, militares e federais se mantêm golpistas e saudosistas da
ditadura militar. A Doutrina de Segurança Nacional permanece arraigada nas suas
entranhas.
Não
houve resgate da verdade histórica para a sociedade. As circunstâncias das
mortes e desaparecimentos não foram esclarecidas.
Os familiares não puderam enterrar seus mortos. Não houve responsabilização dos
agentes da ditadura, os quais cometeram crimes contra a humanidade.
Por
tudo isto, nossa lista de mortos e desaparecidos
políticos é drasticamente lacunar. Dela não constam os milhares de
indígenas e negros chacinados. Não constam tampouco os 52 garotos desaparecidos
em Camanducaia. O mesmo acontece com milhares de trabalhadores do campo mortos
pelos latifundiários. Permanece o processo de assassinato da memória. Permanece
a invisibilização dos crimes da ditadura. Pior ainda: todos estes crimes contra
a humanidade cresceram em escala depois da ditadura, assim como sua
invisibilização. Vivemos no país das chacinas periódicas, onde o excludente de ilicitude (direito de
matar) é praticado diuturmamente pela
polícia militar, a mais letal do planeta. Permanece a guerra ideológica, a guerra generalizada contra os pobres e contra os
movimentos populares. Permanece a política econômica de arrocho, desemprego e
fome. Vivemos no país do racismo estrutural e do genocídio institucional do
Povo Negro e dos Povos Indígenas. País que é também campeão mundial em transfeminicídio
e tem a terceira maior população carcerária – a maioria composta de periféricas/os,
pobres e negras/os. O Estado brasileiro sistematicamente bate recordes mundiais
em violações dos Direitos Humanos.
O
pesadelo dos quatro anos do governo genocida terminou, mas o fascismo permanece
como realidade. Para além da canhestra tentativa de golpe do 8 de janeiro, o
congresso nacional, as assembleias legislativas, as câmaras de vereadores, os
governos estaduais e municipais estão eivados de fascistas e ultradireitistas. O
bolsonarista Romeu Zema (partido Novo) em Minas Gerais é exemplo gritante. Ao
que tudo indica, os milhares de militares que passaram a ocupar postos-chaves no
aparelho de Estado – nomeados por Bolsonaro - ainda não foram de lá removidos.
Em
março, completaram-se 55 anos da morte de Edson Luís de Lima Souto (28/03/1968)
e 50 anos das mortes de Arnaldo Cardoso Rocha (15/03/1973) e Alexandre
Vannucchi Leme (17/03/1973) - assassinados pela ditadura. Em 2023 também
completam 50 anos as execuções pela ditadura dos guerrilheiros do Araguaia
André Grabois (14/10/1973), Maurício Grabois (25/10/1973), Gilberto Olimpio
Maria (25/12/1973) e Guilherme Gomes Lund (25/12/2973). As mortes de Marielle
Franco e Anderson Gomes (14/03/2018), executados pelo sistema, fizeram 5 anos. Nosso
tributo a estas/es companheiras/os, a
todas/os que tombaram na luta contra a ditadura e a todas as vítimas dos crimes
contra a humanidade, de ontem e de hoje. Para honrar a memória de todas/os reafirmamos
a luta permanente pelos Direitos Humanos, contra o terrorismo de Estado, pelo
desmantelamento do aparato repressivo.
GOLPE, DITADURA, TORTURA NUNCA MAIS!
PELO DIREITO À HISTÓRIA, À MEMÓRIA, À VERDADE
E À JUSTIÇA!
FASCISTAS NÃO PASSARÃO!
Belo Horizonte, 1º de abril de 2023
Instituto Helena Greco de Direitos
Humanos e Cidadania - BH/MG