Desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia |
Nota de solidariedade aos familiares
dos desaparecidos
da Guerrilha do Araguaia
A Comissão de Familiares de Mortos e
Desaparecidos Políticos vem, por meio desta nota, manifestar seu repúdio ao
jornalista Hugo Studart no que tange à publicação do livro “Borboletas e
Lobisomens”, de sua autoria, que contém múltiplas mentiras e difamações. Com a
publicação, o autor evidencia seu objetivo de reeditar a “teoria dos dois
demônios”, em uma tentativa de igualar a violência dos militares que cometeram
crimes contra a humanidade à ação dos guerrilheiros que lutaram contra a
ditadura.
A
Guerrilha do Araguaia, desenvolvida no sudeste do Pará entre 1972 e 1975,
constituiu-se em um movimento de resistência à ditadura militar. Caracterizada
pelos conflitos fundiários, essa região assistiu à brutal violência exercida
pelas Forças Armadas, utilizada em larga escala contra a população local. O
terror e a intimidação instalados ganharam contornos especiais a partir da
disseminação dos campos de concentração. Camponeses e indígenas foram
aterrorizados com a prática generalizada da violência, sob a justificativa de
se evitar “os efeitos multiplicadores” da guerrilha. De acordo com as
investigações realizadas pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos
Políticos (CEMDP) e o Ministério Público Federal (MPF), a maioria dos guerrilheiros
foi sequestrada, torturada e executada por agentes do Estado. Os fatos que
envolveram este extermínio foram censurados e estiveram ausentes dos
noticiários da imprensa por um largo período.
A
presença de notórias zonas de silêncio acerca do ocorrido e a ausência de
esforços sistemáticos para a circunscrição factual dos crimes da ditadura, com
a decorrente punição dos responsáveis, levaram à condenação do Estado brasileiro
na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados
Americanos), em 2010. De acordo com a Corte, o Brasil deve esclarecer esses
crimes e responsabilizar criminalmente seus autores. As pressões decorrentes da
condenação levaram o Brasil a criar a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e a
editar a Lei de Acesso à Informação, ampliando o debate público sobre o legado
da ditadura. Ademais, a CNV publicou em seu relatório final os nomes de 377
torturadores, dentre os quais muitos atuaram no extermínio dos guerrilheiros do
Araguaia.
Na atualidade, os principais aspectos da
sentença da OEA ainda não foram cumpridos, sendo vedado o acesso aos arquivos
militares aos integrantes da CNV, bem como aos familiares dos mortos e
desaparecidos políticos. A despeito desse panorama desolador para as famílias,
esse senhor defendeu uma tese de doutorado na UnB sobre a Guerrilha do
Araguaia, transformado no livro mencionado acima, no qual afirma que sete
guerrilheiros desaparecidos durante a repressão ao referido movimento estariam
vivos e teriam estabelecido acordos de “delação premiada” com militares do
aparato repressivo. O autor, entretanto, não apresenta nenhuma prova que
confirme tais fatos, além de não mencionar os verdadeiros nomes dos militares
repressores, que se constituem na fonte do referido do livro.
É digno de nota que, o autor do livro
difama guerrilheiros com relatos imbuídos de misoginia e sexismo. Ele se refere
à guerrilheira Áurea Elisa Pereira (1950-1974) – a qual teria sido presa com
uma criança de colo e executada –, como alguém que se apaixonou pelo seu algoz
e executor, transformando em ato de amor, o estupro que provavelmente foi
perpetrado contra ela pelo agente do Estado. Nesse sentido, o relatório da CNV
sublinhou que o estupro praticado contra militantes presos se transformou em
prática corrente, conforme se pode ler abaixo:
“[...]
Os registros da prática de violência sexual por agentes públicos indicam que
ela ocorria de forma disseminada em praticamente toda a estrutura repressiva.
Nos testemunhos analisados pelo grupo de trabalho “Ditadura e Gênero” são
citados DEIC, DOI-Codi, DOPS, Base Aérea do Galeão, batalhões da Polícia do
Exército, Casa da Morte (Petrópolis), Cenimar, Cisa, delegacias de polícia,
Oban, hospitais militares, presídios e quartéis. [...] (cf. CNV, Relatório,
cap. 10, item 37, p.421)”.
O referido autor afirmou ainda que
Criméia Alice Schmidt de Almeida, integrante da Comissão de Familiares de
Mortos e Desaparecidos Políticos, teria feito acordo de “delação premiada” e
entregue à repressão seu próprio companheiro e pai de seu filho, André Grabois.
Com efeito, Criméia atuou como guerrilheira do Araguaia entre 1969 e 1972,
tendo sido sequestrada por agentes do DOI-Codi/SP, grávida de 7 meses, ao lado
de seus sobrinhos, Janaína e Edson Luís, no final daquele ano. Ela foi
torturada antes e depois do nascimento de seu filho no Hospital do Exército,
localizado na cidade de Brasília, em fevereiro de 1973. Em seu depoimento concedido
à CNV, ela relata esta experiência-limite (cf. registrado em https://www.youtube.com/watch?v=BM04VC_fd00
).
Tão logo saiu do cárcere, a despeito das
perseguições, Criméia foi trabalhar como auxiliar de enfermagem, dedicando-se a
denunciar os crimes da ditadura e ao esclarecimento dos crimes de
desaparecimento forçado, em particular daqueles ocorridos na região do
Araguaia. Ademais, participou ativamente da campanha pela anistia aos
perseguidos e presos políticos. Desde então, tornou-se uma das principais
referências dos familiares e das demandas por “verdade e justiça” no país, além
de ser copeticionaria da ação contra o Estado brasileiro na Corte
Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Sua dignidade e dedicação jamais
foram questionadas. Não por acaso, o autor sublinha que Crimeia foi a única
guerrilheira sobrevivente a denunciar as torturas a que foi submetida.
Diante da impossibilidade de justificar
a atitude indefensável dos militares que torturaram, estupraram e executaram
dissidentes, o mencionado jornalista tenta confundir as diligências e as lutas
por “verdade e justiça”, conspurcando a memória e as ações das vítimas, em
particular, dos protagonistas de conquistas no campo dos direitos humanos, tais
como as sentenças internacionais que cobram do Estado brasileiro o
esclarecimento dos desaparecimentos forçados e a punição dos autores dos crimes
de lesa-humanidade, considerados, portanto, imprescritíveis.
Agosto de 2018.
Pelo esclarecimento dos crimes da
ditadura!
Pela punição dos responsáveis!
Pela abertura dos arquivos das Forças
Armadas!
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