O
Brasil adentrou o ano de 2021 como epicentro da pandemia de COVID-19: é o país
mais mortífero do planeta, o que tem o maior número de casos para cada 100 mil habitantes,
o segundo maior número absoluto de contaminadas/os e de óbitos e o que atingiu
a maior velocidade de contágio. É este o saldo da estratégia de extermínio do
governo Bolsonaro/general Mourão e seu hipermilitarizado Ministério da Saúde do
general Pazuello. Ao atingir o pico de 1800 mortes diárias, Bolsonaro redobra a
virulência do discurso de escárnio contra mais de um quarto de milhão de
famílias em luto. Estas não tiveram sequer o direito de enterrar com dignidade
seus entes queridos. Não há vacina, não há possibilidade de emprego, nem
qualquer tipo de auxílio emergencial.
O sistema sanitário está colapsado e as pessoas morrem em casa e na porta dos
hospitais. Em janeiro dezenas foram chacinadas por sufocamento no Amazonas.
A necropolítica, essência do projeto de
poder bolsonarista – no qual todas as políticas públicas têm caráter eugenista,
higienista e neomalthusiano – tornou-se perigosa também para o mundo. Trata-se de
crime contra a humanidade de um governo que tem como plataforma o genocídio
institucional. Seu paradigma é a ditadura militar sangrenta (1964-1985) e seus
heróis são torturadores contumazes e milicianos assassinos.
Em 2020-2021, o país tem batido
diuturnamente os recordes mundiais negativos que detém e se consolida no topo
do ranking das graves violações dos
Direitos Humanos: desigualdade social; concentração de renda; lucratividade do
sistema financeiro, do agronegócio, das empreiteiras e mineradoras; letalidade
policial; número de casos de tortura e desaparecimentos forçados; racismo
estrutural; genocídio sistêmico do Povo Negro e dos Povos Originários;
destruição irreversível do meio ambiente; esbulho e espoliação institucionais
dos territórios tradicionais de indígenas e quilombolas; aumento exponencial da
população carcerária (terceira do mundo), sobretudo da feminina; níveis de desemprego,
carestia, inflação e miserabilidade; fome endêmica. O Brasil é um dos campeões
mundiais em feminicídios, estupros e violência contra a população LGBTQIA+. É
primeiro do mundo em transfeminicídio. É autoevidente a misoginia da
flexibilização institucional da compra, posse e porte de armas em um país com
este prontuário. É igualmente autoevidente o caráter fascista da excludência de ilicitude/direito de matar
no país cuja polícia é a mais violenta do mundo – aquela que de cada vez mais
mata preto e pobre todo dia.
A combinação das forças que compõem o
governo – extrema direita de todos os matizes, empresários e financistas
adoradores do ultraliberalismo, fundamentalismo evangélico e Forças Armadas -
leva ao paroxismo a violência contra as mulheres no triplo recorte da opressão de
gênero, de raça e de classe. Aprofunda-se processo galopante de fascistização
do aparato repressivo/jurídico/legal/legislativo. As bancadas
boi/bala/bíblia/jaula - maioria que sustenta o governo Bolsonaro/general Mourão
no congresso - completam o quadro. O poder está nas mãos de machos
reacionários, brancos, ricos, racistas, machistas, misóginos, heteronormativos.
Todos têm ojeriza mortal aos Direitos Humanos, à diversidade, à classe
trabalhadora, aos movimentos sociais. Não por acaso, o presidente da Câmara
Federal Arthur Lira é praticante recorrente de violência doméstica, inclusive
armada. Tem processos no Supremo Tribunal Federal e no Juizado de Violência
Doméstica de Brasília. Não por acaso a
Assembleia Legislativa de São Paulo livra a cara de um deputado que assediou e
apalpou a colega em plena sessão ordinária, com transmissão ao vivo e em cores.
São os corpos femininos os mais atingidos
pelo totalitarismo de mercado implementado por Paulo Guedes. Este potencializou
a destruição dos direitos conquistados pela classe trabalhadora e pelos
movimentos sociais ao longo de décadas. As mulheres constituem a maioria que
ocupa os empregos terceirizados/precarizados. Constituem também a maioria dos
empregos domésticos e do setor de serviços, os mais atingidos pelo desemprego e
pelo arrocho salarial. O desmonte e o congelamento dos gastos em saúde e
educação da Emenda Constitucional 95 (aquela do fim do mundo), o fim da
aposentadoria, a porteira aberta para a superexploração do trabalho trazem a
miséria absoluta que fatalmente atinge muito mais as mulheres. São ainda as mulheres
aquelas que mais sofrem os despejos, remoções e devastações ambientais
provocados pela reengenharia urbana excludente e segregadora praticada pelos
governos, pela especulação, pelas empreiteiras e mineradoras.
O moralismo e o obscurantismo
fundamentalistas característicos da escalada fascista em andamento atingem o
âmago do que constitui a própria razão de ser do feminismo: a luta contra a
dominação da sociedade hegemônica patriarcal machista, racista, colonialista e
patrimonialista. Estamos falando do direito ao aborto; dos direitos sexuais e
reprodutivos como opção, não como imposição; do direito ao parto humanizado; do
livre exercício da sexualidade; do combate à prisão do trabalho doméstico
alienante, invisibilizado e desqualificado pelo sistema como improdutivo. Estamos
falando da denúncia das instituições lar e família como garantidoras da manutenção
e reprodução do patriarcalismo e como as maiores perpetradoras de estupros,
feminicídios, pedofilia e violência doméstica.
A mencionada escalada fascista é
liderada por Bolsonaro e Damares Alves, sua dita ministra da mulher, da família e dos direitos humanos (?). O direito ao aborto
livre, seguro e gratuito - questão de principio histórica, imprescritível e
inegociável da luta pela autoemancipação feminina – continua sendo anátema no
Brasil. Estamos no estágio medieval da criminalização do aborto. O caráter
hediondo da cruzada anti-aborto adotada por Bolsonaro e Damares Alves como
método de governo se escancarou em agosto de 2020, a partir do caso aterrador
da menina capixaba de 10 anos que engravidou depois de passar metade de sua
vida a ser estuprada por um tio. Pois ela foi, de novo, violada por Bolsonaro e
Damares. Estes não só tentaram impedir o aborto previsto em lei (risco de vida
para a mãe e resultado de estupro), como vazaram o nome da criança e do
hospital onde seria feito o procedimento. Acossada pelas hordas bolsonaristas,
ela teve que viajar clandestinamente para Recife onde finalmente foi realizado
o aborto em um hospital referência, cujos profissionais também sofreram
represálias. Desde então, Bolsonaro/Damares Alves publicaram uma profusão de
medidas, portarias, recomendações que reforçam a criminalização do aborto e a
exiguidade dos casos permitidos. Bem na linha do reacionarismo bolsonarista, o
próximo passo é destruir o PNDH3 (Programa Nacional de Direitos Humanos)
articulado em 2008 e publicado em 2009. Na mesma linha, podemos enumerar aqui
uma sequência de iniciativas infames do sistema como os estatutos da família e do nascituro, os 52 projetos contra o
aborto que tramitam no congresso, a lei de alienação parental, a abjeta Escola Sem Partido e sua estridente rejeição às palavras gênero e
sexualidade.
No dia 14 de março, a execução de
Marielle Franco e Anderson Gomes completa três anos. Até agora não houve
esclarecimento circunstanciado. Ninguém foi responsabilizado. Trata-se também
de caso emblemático: Marielle Franco é mulher negra, periférica, lésbica e
defensora dos Direitos Humanos. Representa totalmente os alvos principais do
genocídio institucional e do racismo estrutural. A sua execução desvelou também
mais uma peculiaridade sinistra do governo Bolsonaro/general Mourão: para além da
promiscuidade da família Bolsonaro com milicianos assassinos, fica patente a
presença orgânica das milícias no Palácio do Planalto. Tanto quanto os
militares, os milicianos estão no poder.
Para concluir: onde buscar o positivo em
meio a tanta negatividade e iniquidade? O
positivo é a própria luta, a negação resoluta da banalização do horror. Esta luta
é contra-hegemônica, permanente e estrutural. A história do 8 de Março nos
ensina que a luta feminista – assim como a luta pelos Direitos Humanos - visa a
transformação radical da sociedade na perspectiva classista. É, por definição, Antipatriarcal,
Antirracista, Antifascista, Anticapitalista e Decolonial. Retomemos as energias
rebeldes e revolucionárias das mulheres que, há 150 anos, construíram a Comuna
de Paris e das mulheres que, há 85 anos, combateram na Revolução Espanhola.
Recuperemos as lutas autônomas e emancipatórias das indígenas e das zapatistas do
México e a radicalidade radiante das guerrilheiras curdas de Rojava. Saudemos
fortemente as feministas argentinas que, desde abaixo, acabaram de conquistar o
direito ao aborto livre, seguro e gratuito. Saudemos fortemente as companheiras
chilenas - com destaque para as indígenas Mapuche - que estão à frente do levante
contra o neoliberalismo. São também as
mulheres que protagonizam agora a luta contra o golpe militar em Mianmar e as
manifestações que já provocaram a queda do Ministro da Saúde no Paraguai.
Saudemos fortemente as companheiras
trabalhadoras – pobres, negras, indígenas, quilombolas, lésbicas e trans – que
se organizam na luta cotidiana tenaz contra o terrorismo de Estado e do
capital. Nosso reconhecimento às trabalhadoras da saúde, as quais estão na
ponta da linha de frente no enfrentamento da COVID-19. Nossa solidariedade às
mais de 265 mil famílias que choram a perda dos seus entes queridos para a
pandemia e para a necropolítica do governo Bolsonaro/Mourão.
Fora
o governo Bolsonaro/Mourão! Pelo fim do genocídio!
Vacinação imediata para todas/os!
Auxílio emergencial e renda básica universal
já!
Direito ao aborto livre, seguro e
gratuito!
Todo apoio às trabalhadoras da saúde!
Todo apoio às trabalhadoras do campo e
da cidade!
Todo apoio às indígenas e quilombolas!
Todo apoio às moradoras de ocupações,
vilas, favelas e periferias!
Machistas, misóginos, racistas,
fascistas: NÃO PASSARÃO!
Belo Horizonte, 08 de março de 2021
Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania
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