Neste ano de 2021, esta terrível efeméride dos
57 anos do golpe se reveste de caráter ainda mais abominável. O Brasil se
consolida como epicentro da COVID-19. Em 24 horas, quase quatro mil pessoas morreram
por sufocamento. O país caminha a passos largos para meio milhão de óbitos e 15
milhões de casos. É este o saldo da política sanitária genocida do governo de
Bolsonaro/Mourão/Guedes e militares.
O golpe militar
de 1º de abril de 1964 implantou a ditadura de 21 anos (1964-1985). Trata-se do
projeto burguês de modernização
conservadora do capitalismo. Seu núcleo é o terrorismo de Estado
consolidado na Doutrina de Segurança Nacional. Foi montado gigantesco aparato
repressivo para a contenção e eliminação dos inimigos internos – as/os
subversivas/os, as/os indesejáveis, as classes perigosas, as/os diferentes,
as/os ativistas e militantes. Diz-se que é esta a sua maior semelhança com
o fascismo: combinação de aceleração da acumulação capitalista e superexploração
da classe trabalhadora com repressão desenfreada. Seus agentes constituem o seguinte
bloco de forças: a burguesia associada ao capital internacional hegemonizado
pelo capital financeiro, os latifundiários, as empreiteiras, a mídia
corporativa, as Forças Armadas, a Igreja Católica, o fundamentalismo cristão.
Destaque para a forte presença financeira, política e militar do imperialismo estadunidense.
A ditadura militar
brasileira foi a segunda mais longeva das ditaduras sangrentas do Cone Sul da
América Latina. Tornou-se a referência de todas as outras, para as quais
exportou know-how, como os desaparecimentos forçados. Com elas
articulou a internacional do terror chamada Operação Condor.
Nenhuma sociedade escapa incólume a 21 anos de ditadura. Menos
ainda em um país que se fundou como um negócio vil baseado no tráfico negreiro.
País que tem no prontuário mais de 500 anos de extermínio dos Povos Indígenas;
mais de 350 anos de escravidão; e, a partir do período dito republicano (1889 para cá), Estado de exceção
permanente para as/os excluídos
históricos de sempre, seja em governos ditatoriais ou constitucionais.
A ditadura sedimentou todo o lastro desta construção de longa
duração da cultura repressiva: escravismo, patriarcalismo, misoginia,
patrimonialismo, colonialidade. A tortura, o desaparecimento forçado, o obscurantismo, o negacionismo, a mentira
organizada, a estratégia do esquecimento foram adotados como políticas de
Estado. Consolidaram-se a dominação e desigualdade intransponíveis, a cultura
do extermínio, o racismo estrutural, o genocídio institucional dos Povos
Indígenas e do Povo Negro, o ódio à diversidade e aos Direitos Humanos.
Depois que o
último dos generais-ditadores deixou o Palácio do Planalto, vieram 34 anos de
uma transição conservadora, pactuada, continuísta e sem ruptura (1985-2018),
forjada no próprio sistema. Há dois anos e três meses (1º de janeiro de 2019),
deu-se o desfecho desta transição com o advento do governo extrema-direita Bolsonaro/Mourão.
São autoevidentes o elo e a matriz comum que o ligam ao golpe de 1964 e à
ditadura militar.
Foram os 21 anos
de ditadura e os 34 anos de transição pactuada que criaram as condições para a
consecução de um projeto de poder que mimetiza a ditadura, adota como agenda in totum o seu legado, tem como
paradigmas torturadores contumazes e milicianos sanguinários. Sua composição é uma
combinação de forças bastante indigesta: extrema-direita de todos
os matizes representadas pelas bancadas Boi/Bala/Bíblia/Jaula (leia-se Centrão), ultraliberalismo (leia-se totalitarismo
de mercado), fundamentalismo evangélico, Forças Armadas e milícias. Estas, para além
da proximidade com a família Bolsonaro, têm presença orgânica no aparelho de
governo.
O componente
estruturante do projeto de poder bolsonarista é a militarização do sistema. Como na ditadura, o atual governo é dos
militares. A recente dança de ministros não muda este cenário um milímetro.
Mais de seis mil oficiais se apropriaram dos cargos estratégicos do executivo
federal – só no Ministério da Saúde são 25. O vice-presidente é general. São
sete ministros de Estado. Completa o quadro o recém nomeado ministro da justiça
– delegado da PF, bolsonarista raiz da bancada da Bala.
São todos
inimigos ferrenhos dos Direitos Humanos. São todos saudosistas da ditadura, do
AI-5, da Doutrina de Segurança Nacional. Muitos daqueles que ocupam o primeiro
escalão são da turma do Haiti. Lá, o
comando brasileiro das forças da ONU (2004-2017) adquiriu experiência na doutrina da contra insurgência (doutrina da
pacificação) ao combater selvagemente as forças oponentes (leia-se inimigos internos) em vilas, favelas e
comunidades. O general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança institucional) é o
responsável pelo massacre de Cité Soleil (Port au Prince, julho de 2005).
Perdeu o comando da missão por causa disto. É dele o infame bordão
da extrema-direita, dos fascistas e da mídia conservadora: direitos humanos para humanos direitos.
A turma do Haiti trouxe a doutrina da pacificação para o Brasil.
Aqui ela é implementada nas invasões policiais e militares dos morros, vilas e
favelas, nas operações de garantia da lei
e da ordem, nas chacinas cotidianas. O general Braga Netto (Ministério da
Defesa) usou e abusou desta lógica do confronto e do abate no comando da
intervenção federal no Rio de Janeiro (fevereiro a dezembro de 2018). Neste
período houve a execução de Marielle Franco e Anderson Gomes (14 de março de
2018), nenhum avanço das investigações deste crime e aumento brutal da
letalidade policial.
A partir de 2019,
a polícia mais letal do planeta tem batido o próprio recorde em morticínio
diuturnamente. Tem crescido também exponencialmente o número de casos de
tortura, desaparecimentos e execuções por militares das forças armadas. Alvo
principal: negros, pobres e periféricos. A novidade estarrecedora é o grande
aumento de crianças atingidas. O aparato repressivo legado pela ditadura – que
nunca foi desmontado – tem sido incrementado por outros dispositivos
totalitários como os autos de
resistência, a excludência de
ilicitude (pacote anticrime do Sérgio Moro), a facilitação e incentivo de
posse e porte de armas.
A manutenção do legado da ditadura militar é
princípio fundante do projeto de poder em vigor. No dia 18 de março, o Tribunal Regional
Federal da 5ª Região anulou a liminar contrária e autorizou o exército
brasileiro e a presidência da república (¿) a celebrarem o golpe militar de 1964. Assim, o Estado brasileiro
institucionalizou a celebração do
aniquilamento da história e da memória das dezenas de milhares
de pessoas que foram perseguidas, monitoradas, cassadas, presas, exiladas,
banidas, torturadas, estupradas, mortas e desaparecidas. Institucionalizou
a celebração das graves violações dos Direitos Humanos e dos crimes contra a
humanidade perpetrados pela ditadura. Reforçou os atos de ódio das hordas bolsonaristas
pelo Brasil afora a exigir AI-5, ditadura, tortura e terror.
Esta postura
anti-direitos humanos não constitui novidade no judiciário. Em abril de 2010, o
Supremo Tribunal Federal (STF) firmou a constitucionalidade da interpretação
imposta pelos militares da lei de anistia. Foi consagrada a anistia de mão dupla - a
inimputabilidade de torturadores, assassinos e ocultadores de cadáveres de
opositoras/es da ditadura. Não por acaso, neste mesmo ano o Estado brasileiro
foi condenado pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos por crimes de lesa
humanidade cometidos pelas forças armadas no massacre à guerrilha do Araguaia
(1972-1975). Em 2018, foi de novo condenado pelo assassinato de Vladimir
Herzog.
A pastora
fundamentalista evangélica Damares Alves – titular do dito Ministério da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos leva ao paroxismo a postura anti-direitos
humanos. Ela tem desanistiado
centenas de companheiras e companheiros vítimas da ditadura e desconstruído os
mecanismos de prevenção e combate à tortura e as conquistas da luta por
Memória, Verdade e Justiça. Agora quer aniquilar o 3º Programa Nacional de
Direitos Humanos (PNDH3).
Nos últimos três
anos, o STF tem se tornado cada vez mais militarizado. Seu
esquema de segurança foi reforçado com um arsenal de balas de borracha, gás de
pimenta e blindados. Seu alvo, certamente, não haveria de ser a invasão da turma do PIB sob a liderança de
Bolsonaro e Paulo Guedes, em março de 2020.
Em 2018, quando presidente da corte, o
ministro Dias Toffoly fabricou o cargo de assessor
especial para assuntos militares. Seu primeiro titular foi o general Fernando
Azevedo e Silva, indicado por ninguém menos que o então comandante do exército,
general Eduardo Villas Bôas – aquele que tuitou a mensagem golpista intimidando
o próprio STF. Toffoly declarou que não houve golpe em 1964, houve movimento militar.
No ano passado, ele
suspendeu a determinação da justiça federal de retirar do site oficial do
Ministério da Defesa a ordem do dia alusiva
ao 31 de março de 2020. Esta é assinada pelo
então ministro da defesa (general Fernando Azevedo e Silva) e pelos comandantes
das três armas, por determinação de Bolsonaro. Trata-se dos quatro
generais recém-demissionários/demitidos,
os quais, nos últimos dias, estão a ser incensados pela mídia corporativa, que os considera salvadores da pátria. O teor do documento
é o mesmo das ordens do dia de 1º de
março de 2019 e de 2021(assinada pelo general Braga Neto, atual ministro da
defesa). Todas as três exalam o negacionismo e o autoenaltecimento mais infames,
típicos do canhestro léxico da caserna: o movimento
de 1964 é apresentado como marco para
a democracia brasileira; as forças armadas como grandes defensoras da pátria, garantidoras
dos poderes constitucionais e da paz social. É o dia da liberdade, arremata Bolsonaro. O general Mourão também
comemora entusiasticamente o golpe de 1964.
A mesma suprema corte que enquadra na Lei de
Segurança Nacional um deputado fascista por causa de um vídeo, nada faz a
respeito a institucionalização da apologia de crimes contra a humanidade, da
comemoração do golpe de 1964 e da celebração da barbárie pelo Estado
brasileiro. Além disso, a Lei de Segurança Nacional é dispositivo da ditadura
militar contra o qual lutamos há décadas. O governo Bolsonaro/Mourão e seu
ministro da justiça têm multiplicado as iniciativas de enquadramento de estudantes,
professoras/es, jornalistas, chargistas, militantes de movimentos sociais, dos
Direitos Humanos e de esquerda.
Ao banalizar o
entusiasmo das Forças Armadas em relação à ditadura, a mídia corporativa tem reproduzido
literalmente a narrativa dos generais, jogando o papel de porta voz do alto
comando – exatamente como fazia durante a ditadura. Militares saudosistas da
ditadura, admiradores de torturadores sanguinários, entusiastas do golpe estão
empenhados em tentativa frenética minimizar seu enorme comprometimento com o projeto
de extermínio em andamento – e não só no que se refere à carnificina sanitária.
Para isto forjam movimento de descolamento do presidente genocida. Trata-se de reciclagem da cultura do
simulacro característica da ditadura militar.
Foram os
militares que, durante a ditadura, institucionalizaram a tortura e o
desaparecimento forçado, ainda hoje práticas sistêmicas. Foram eles, as forças
policiais e grupos de extermínio parapoliciais e paramilitares que construíram
o gigantesco e ubíquo aparato repressivo para aniquilar os inimigos internos. Este aparelho continua montado, não tem como ser
desinventado. Ao contrário, só tem sido incrementado ao longo destes 57 anos.
Os arquivos das Forças Armadas, da Polícia Federal, das polícias estaduais, da comunidade de informações, do Itamarati
não foram abertos. Há lacunas, portanto, na história da repressão. Não há como
fechar o número de torturadas/os, mortas/os e desaparecidas/os. A totalidade das/os indígenas e a imensa maioria
das/os trabalhadoras/es do campo sequer foram nomeadas/os nas listas
existentes. Em avaliação conservadora, apenas em uma região, as/os indígenas massacradas/os
pela ditadura podem chegar a 10 mil. Hoje os Povos indígenas constituem um dos
alvos preferenciais da política genocida do governo Bolsonaro/Mourão. As mortes
e os desaparecimentos não foram
resolvidos: os familiares continuam a buscar os restos mortais dos seus entes
queridos. Não houve esclarecimento
circunstanciado nem responsabilização de agentes de Estado responsáveis pelas
torturas, mortes e desaparecimentos.
Não houve a responsabilização das grandes corporações empresariais e financeiras
que respaldaram e financiaram a ditadura. Há um longo caminho a percorrer para
a conquista do direito à História, Memória, Verdade e Justiça.
- ABAIXO O GOLPE DE 1º DE ABRIL DE 1964! ABAIXO A
DITADURA! TORTURA NUNCA MAIS!
- COMPANHEIRAS/OS MORTAS/OS E DESAPARECIDAS/OS:
PRESENTES, HOJE E SEMPRE!
- PELO DIREITO À HISTÓRIA, À MEMÓRIA, À VERDADE E À
JUSTIÇA!
- ABAIXO O TERRORISMO DE ESTADO E DO CAPITAL!
- FORA GOVERNO BOLSONARO/MOURÃO!
- FORA MILICOS E MILÍCIAS DE ONTEM E DE HOJE!
- PELO FIM DO GENOCÍDIO!
- FASCISTAS NÃO PASSARÃO!
Belo Horizonte, 1º de abril de 2021
Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania – BH/MG
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